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Mostrando postagens de janeiro, 2020

Saudades de todo dia, saudade que mata o peito

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Um dia da saudade, como se saudade não se sentisse todo dia.  Saudade de quem se foi, saudade de nós. Saudade do brilho ligeiro da vontade de picolé na feira saudade do colo do pai saudade da mão que acolhe Puta saudade de compartilhar com a amiga a descoberta de algo bonito e se dar conta que ela não está mais entre nós Saudade até de ir ver o pai no hospital quando ainda estava vivo Saudade de quando a mãe era mãe e não pedia para ir para uma casa que já não existe, apenas em sua mente Saudade do primeiro amor do primeiro amasso do orgasmo só de tocar na perna saudade das séries de ficção saudade de escrever sem freios saudade de projetar com paixão Saudade de ser ingênua de um tempo em que as horas não voavam Saudade dos anos em que as coisas tinham mais sentido Saudades de ter um ideal Saudades de ter avó, tios e tias comigo Saudades dos banhos de mar e dos debates em família Saudades de ir buscar um dicionário quando não se sabia uma palavra Saudade de co

Donatila, a comandante

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aiiiii...!!! Gritava a jovem Helena enquanto sua irmã a jogava sobre a cama e lhe dizia, com um tom de voz que não deixava dúvidas: tu não vai namorar o primo, vai namorar o Paulo que é um rapaz de futuro e bom! Sábias palavras e atitudes de quem sempre foi meio maga. Ainda ia ter essas capacidade de ver com clareza as definições da vida, olhando para cada um que passasse na sua frente como se fosse um raio x, daqueles que escaneiam e sabem exatamente o que se fez e o que não se fez.  Órfãs, Sylvia Donatila e Helena Selma, viviam agora com seus tios, em Santa Maria. Uma cidade ainda não efervescente com a vinda da futura universidade que, um dia, iria atrair mais jovens como elas para um futuro de conquistas. Para elas, restava estar de casa em casa, desde que seus pais morreram.  Habituada a viver com seus tios que desfrutavam de uma boa posição social e econômica, logo a Sylvia tomou conta da casa. Era ela quem decidia as despesas, se podiam comer isso ou aquilo. Seu tio,

O baú de Mnemosine e a caixa de Lete

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Engoliu a água com sabor. Sentiu cada gole descendo por sua garganta enquanto o mantra tibetano se fazia ouvir na sala. Haveria de reverter essa nuvem que se formava sobre ela. Sua cabeça, sua memória, sua capacidade de articular raciocínios.  _ Minezinha! - escutou a voz de sua irmã gêmea gritando da sala ao lado. Tinham nascido há exatos 60 anos e nunca mais se desgrudaram. Por obvio que passaram momentos deliciosos com outras pessoas, mas viver de verdade, era uma com a outra. - Fala Letinha! - a voz melodiosa continuava com o timbre de adolescente. Já sabia que sua irmã lhe ia narrar algo maravilhoso que acabara de ouvir/ler/conceber. Dona de uma memória prodigiosa, quase fotográfica, era uma ironia do destino. Seu pai, professor de história, amante da mitologia grega, conhecedor de cada história e cada pedaço da Hélade tinha o nome prosaico de Sebastião. Talvez pela inconformidade com o seu, batizou as pequenas de Mnemosine e Lethe. Cada uma com sua sina, não pensou muito

Ariadne tecendo teias

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Teço teias na esperança de  r eter-te. Tu ficas.  Me envolves em tua lábia de caçador,  solta setas,  me matas.  Renasço.  De ti guardo memórias que ninguém mais.  Vida nova, novos olhares. Velhos sentires. Dúvidas iguais. Certezas absolutas. Ariadne corria solta pela sala, em desbragada dança, dessas que o vinho torna factual. Pela primeira vez em décadas se sentia só. O tempo era dela.  Nem   sabia mais o que fazer dele. Tanto tempo vivendo para outros. Sendo de outros. Afastando vontades, abrindo mão de desejos. Tecendo estradas para outros caminhares. Seu corpo marcado pela comida, único prazer solitário. O único que restara. Mentira. Tinha as leituras. Mas nem essas. Lia mais por obrigação, os olhos correndo frases que pareciam não fazer sentido. Nada mais tocava. Só a urgência do desejo alheio. O que dela precisavam. Decisões, contas, sobrevivência alheia, carência dos outros. A dela sufocada.  Tecia urgências. Suas teias se misturavam à gosma das

Flávia, a batalhadora

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Os olhares das pessoas no saguão do hotel se detiveram na jovem que acabara de entrar. Moças desacompanhadas em locais como aquele não eram comuns. No final da década de 30 do século XX Porto Alegre ainda era uma cidade muito provinciana. Passos resolutos, sapatos fazendo barulho no piso recém escovado. O recepcionista notou a apreensão  em sua voz ao perguntar pelo hóspede do quarto 415. Sorriu com o canto da boca, imaginando talvez um encontro clandestino. Uma semana antes, Flávia implorara ao tio, irmão mais velho de sua mãe, que a acompanhasse naquela primeira entrevista de emprego. Se formara professora, a única das irmãs que tivera a oportunidade de ter uma formação acadêmica formal. Para isso morara na casa dos tios professores, Helena e Ignácio. Alemães de origem, eram queridos. A tia bem mais que o tio, é verdade. O som de sua bengala se fazia ouvir nos cômodos da casa e ela estudava ainda mais, imaginando seus sermões.  Foram anos de saudades da família, mas ela aprov

Devoradora do passado

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Belarmino, que era filho de Fermiano, casou com Francisca Rosalina e geraram aquele que seria conhecido como Chico Bello. Meu bisavô paterno. Deles sei pouca coisa. Algumas datas, registros de paróquias que me levam a ver que nasceram, casaram e procriaram. Como vem fazendo multidões antes e depois deles. Em algum momento que não consegui decifrar, os Joaquim de Oliveira viraram Oliveira Bello. Não apenas na tradição familiar, mas nos registros também! Por que isso me importa? Porque fico horas a fio buscando respostas de um passado que não presenciei mas que ajudou a me tornar a pessoa que sou? "Eu preciso devorar o passado, para não ser por ele consumido."A imensidão íntima dos carneiros - Marcelo Maluf  Talvez a leitura desse livro de Marcelo Maluf me ajude a compreender essa busca. Embora estes avôs e avós que nunca conheci já estejam na poeira da memória, estão vivos dentro de mim. É como se eu fosse um elo de uma corrente que vem de milênios e me coubesse deslin

Julieta - a rainha sonhadora

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O brilho do espelho ao longe fez com que Julieta desviasse os olhos dos céus e voltasse à realidade. Morava no meio do mato, uma verdadeira grota para ela, criada que fora na capital. Ideia mais louca do Doutor. O Doutor era seu pai. Parecia tão mais velho que sua mãe. Suas botas e roupas claras lhe davam um ar bonachão que contrastava com o sotaque carregado alemão que teimava em sair de sua boca, malgrado o tempo de vida no Brasil. Viera muito pequeno, falava vários idiomas, era tradutor juramentado. Fora professor e enfim se formara em Medicina. E viera parar naquele fim de mundo só para ajudar quem dele precisasse.  Os pequenos até gostavam dos banhos de sanga, de não precisar frequentar a escola e das frutas colhidas no pé. Não ela. Enquanto ajudava sua mãe nas costuras, seu pensamento voava.  -"Vou morar no Rio de Janeiro" dizia para as irmãs mais novas. Dava de ombros com as risadas delas. -"Sonhadora" gritavam às suas costas! Julieta

Cada vez mais nichados e filtrados

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Quem é esta que me olha no avatar de uma rede social e que parece vagamente comigo?  Uma mulher filtrada que hoje em dia ninguém lá é muito autêntico se não se enquadrar naquele tipo de beleza pura, a que já nasce perfeita. Ou quase. Ou perto. Para corrigir as imperfeições existem os filtros. Além dos insondáveis e aplicáveis na vida real, temos os da vida virtual. No dia a dia as pinturas de cabelo, maquiagens, batons e polimentos de educação social nos fazem mais palatáveis para a vida gregária.  Tudo bem que existem aqueles momentos olho a olho que caem as máscaras e a realidade se faz pungente. Ou urgente. Ou ainda simplesmente convergente. Quando era pequena as fotos eram coloridas e retocadas quando mais profissionais. Hoje qualquer aplicativo que se preze nos transforma em algo que não somos. Esses dias estava brincando com um desses de restauro de fotos antigas. O resultado maravilhoso! Mas um tanto idealizado dos verdadeiros rostos de antepassados. Mas como tudo na

Desapego Não de tudo

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Percorro cada pedaço do quarto cheio Poeira tempo insano Paralisada no tempo Acordo Descasco Pouco a pouco cascas agruras e passado Desapego Não de tudo Espano memórias jogo no lixo muito de mim Decanto Me re-encanto Despertando enfim do longo inverno paralisante ataúde sem portas onde me escondi da luz Meu tempo Minha história Minhas regras Não me peça pressa Certezas que já não tenho fui me deixando partir me parindo de minúsculos pedaços de gigantes melancolias e brilhantes  raios de fé na vida eterna otimista que teimo ser

O xadrez e as obsessões

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Você nota que tem obsessões quando aquilo começa a fazer parte compulsiva de seus sonhos. Recordo de um conto que li, muitos anos atrás. Falava de um homem que fora preso e colocado em uma solitária. Tempos infindáveis sem nada que não fosse comida colocada por uma mão sem rosto. Pior tortura não havia, segundo ele. Um dia conseguira roubar, ou achar que o fosse, um livro. Um livro! Passou algum tempo sem abri-lo, só antegozando o prazer de o ler. Mas quando, finalmente, se encheu de coragem, e conseguiu olhar, trêmulo de emoção, qual não foi sua decepção. Era um livro sobre jogadas de mestres de xadrez! Entre a frustração de ter o que imaginava e sentido de sobrevivência de se arranjar com o que tinha, começou a ler. E aprender xadrez pela teoria. Guardou pedaços de pão e com eles formou peças. Repetiu estratégias Ad aeternum até não precisar de recursos externos e o jogo se passar na sua cabeça. Começou a caminhar obsessivamente pela cela, repetindo os movimentos, maquinand