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Mostrando postagens de novembro, 2017

Da chaleira que chia

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Tinha jeito não. Já tentara de todas as maneiras que conhecia. E das que imaginara. Não conseguia se comunicar. Essa coisa da convivência não era para ela. Tirou a chaleira do fogo pensando em fazer um café cheiroso desses de arder a narinas de felicidade. Café tinha dessas propriedades de fazer tudo voltar aos eixos: a cabeça e a alma. Olhou em volta procurando mentalmente a lista das tarefas do dia. Não achou como de costume em meio da bagunça que era sua mesa de trabalho. Não faz mal, pensou. Lembro que era dia de consulta no psiquiatra. Onde ia para ver se conseguia elaborar o porque não conseguia essa convivência tranquila com a vida e o que fazia na real era fingir que falava de coisas importantes para que a pessoa para quem pagava os tubos a visse como alguém normal. Era dessas. Fingia na análise. A chaleira chiava e sua mente também. Logo na segunda feira que era dia de produção vinha essa letargia da tristeza que teimava em desacalmar sua rotina. Talvez um banho re

Melancolia rima com melancia

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Melancolia rima com melancia Fruta que se delicia Sem sentir que adormecia E desde quando as rimas e as coisas têm que fazer sentido? Desde quando dá para acordar e já saber que ainda existem leilões de escravos, que gente persegue pesquisadores, que a arte virou coisa de museu e deve ser bem comportada. Que tem gente que acha que todo ser humano é tratado igual mas vocifera quando um privilégio seu é bolinado. Quando mulheres são mortas por serem mulheres. Quando o ontem parecia mais moderno e se acorda com a sensação de ter entrado em uma máquina do tempo, daqueles filmes classe B, em que tudo é pesadelo e a gente acorda num titanic (e óbvio na terceira classe) ou em uma fogueira da inquisição onde a tortura e a delação eram aceitas como forma de justiça.  Melancolia rima com agonia Talvez seja nossa apatia Que traga tanta Paralisia  Em dias de gris interno e externo, nossa letargia aumenta. Nosso desfazer se torna mais intenso. Nossa força de vontade se esvai. Melhor colocar uma más

Era dia de colheita

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Depois da chuva tormentosa, resta procurar nos céus o arco íris.  Embora otimista, restava nela uma amargura germânica, dessas que faz a natureza desconfiada. Dessas de procurar migalhas em vez de aproveitar a fartura. Dessas de metamorfosear de gris, o que pode ser luz. Agora que o tempo alcança essa tranquila (e angustiante) curva do mais para lá do que para o começo que se dava conta que nunca precisara ter sido assim. Podia ter levado a vida mais de roldão, mais de boas. Podia ter sido mais sincera de coração, podia ter sido mais leve.  Podia ter sido mais ela. Menos outros.  E como estava no tempo do já que, urgia recomeçar.  Era tempo de colheita.  Da vida ia aproveitar o que restasse. O que tinha semeado.  O olhar mais ligeiro. O amor mais faceiro. Ia gritar seus amores, suas dores. Seus desconfortos. Mas ia mesmo era amar muito. Ia rir mais que chorar. Ia relevar. Ia fazer roseiras dos espinhos. Ia saber regar cada pedacinho de terra já antecipando a sementinha que cresceria. 

Amor se ama cantando

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Era tempo de construção.  Difícil entender que o parir qualquer coisa demanda tempo. E aquele lento rolar de minutos, horas e dias que antecedem a concretização era algo que a sua alma não entendia. E se entendia, não aceitava. Mas não havia nem de onde nem por que, tinha que sentar e esperar. Até lá cantarolava. A melodia que viesse à cabeça. Às vezes acordava com uma e ela ia e vinha, meio que perene, na sua mente. Só no chuveiro se arriscava a deixar sair algum som. Desafinado.  Era tempo de construção. Desses de colocar adubo em cada gesto. Colocar ternura em cada palavra e trazer o olhar mais sincero para expor ao Outro sua delicadeza de alma e sentimentos.  Em tudo se revelava. E nesse desvelo colocava seu melhor Eu para fora. Sua atenção mais especial, suas qualidades mais bonitas. Era em tudo uma maravilha de pessoa que se deixava descortinar. E ele também devia fazer o mesmo porque homem mais fantástico nunca tinha conhecido. Adivinhava seus desejos, mesmo os

Pratos especialmente memoráveis da infância

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Retomando o projeto 52 perguntas, 52 respostas que andava adormecido.  Tenho essa mania de revirar o passado e anotar o que vou descobrindo, além de gostar de ouvir os tios e tias mais velhos. Foi assim que descobri muita coisa de minha família e atualmente estou reunindo essas informações em dois blogs para que mais pessoas possam também usufruir dessas descobertas. Lembrei especialmente deste projeto que achei na internet tempos atrás lendo para minha mãe as recordações que ela e suas irmãs escreveram sobre as suas infâncias. Se não fossem por elas muitas das coisas que sei sobre meus antepassados teriam se perdido no limbo da história. E porque acho importante preservar a memória dos que me antecederam? Uma que é uma forma de homenagem. Outra que me mostra de onde vim e quais são os valores e heranças afetivas e comportamentais que deles herdei. Algumas das recordações mais importantes de nossas vidas estão relacionadas aos sentidos. As músicas e sons que ouvimos. Os chei

Teias de descobertas

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Dia Um - a noite que termina Era de madrugada e logo a luz viria com toda a intensidade. Não importava. Tinha passado a noite em claro mesmo. Era sempre assim. Um período de intensa alegria e logo em seguida vinha a realidade pra dizer que isso não era pra ela. Essa alegria bem prosaica de compartilhar e gozar era para os outros. Para ela ficava a sensação de coisa nunca terminada. Quando se permitia a entrega e soltava sua ternura mais funda,as coisas se invertiam e fugiam da sua mão. Sempre fora assim.  Arisca,gata fugida e vadia. Gata de rua,medrosa,manhosa Acostumada a apanhar. Já não sabia nem mesmo no que acreditar. Nem nela própria. As melhores horas ainda eram os momentos vividos sem preocupação com o amanhã ,sem preocupação com o futuro. Fazer planos lhe era difícil. Não que não gostasse. Adorava sonhar e planejar como todo mundo. Mas tinha essa ferida nunca cicatrizada no coração que começava a incomodar e doer. Era uma consciência perturbadora da realidade. Era me

Urgia acontecer

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“Eu ainda faço café para dois.” (Zak Nelson) Acordou com luxos de guria nova. Resplandecia. Desejos inconfessos, desses que cabem como luva quando se tem a carne dura e os peitos altivos, cresciam nela. Por ela. Vontades escusas e tardias e por isso mesmo tão cheias da urgência de quem se descobre atrasada na vida. Suspirou três vezes. Tinha essa mania do três desde pequena. Três toques, três beijinhos na face, três trepadas sem gozar, três amantes fugidios. E agora três motivos para partir. E nenhum para ficar. Um lugar qualquer perto da Terra do Nunca, um dia de novembro de um ano perdido no tempo. Querida amiga Manoela, Acabo de acordar e lembrei de ti. De nós e nossas travessuras de adolescentes que se descobriam. Morri de vergonha de pensar nelas. Tu também? Nem sei a razão de lembrar  disso agora já que só estou escrevendo para mandar meus sentimentos pela tua perda. Antonio era um bom pai, bom marido e bom avô. Tenho a certeza de que Deus em sua infinita bondade o