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Mostrando postagens de junho, 2023

O sonho de Eva

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  Eva era uma mulher ruiva, de aproximadamente 30 anos. Tinha incríveis olhos verdes que mergulhavam em livros de fantasia e aventura. Embora sonhasse com locais e aventuras mágicas, sua rotina era bem monótona: trabalhava em um escritório, voltava para casa, assistia algum filme na Netflix e ia dormir.  Um dia, apareceu em sua vida um convite inesperado: um conto que ela havia escrito e enviado por e-mail, sem muita esperança, tinha a possibilidade de ser publicado por uma pequena editora. O conto era sobre uma heroína que enfrentava dragões, bruxas e vampiros em um reino encantado. Algo bem fantasioso, mas que fez Eva bastante feliz ao escrever. E bem mais ao receber o convite. Mal sabia que isso mudaria sua vida para sempre. No dia do lançamento do livro, vestiu seu melhor vestido verde como seus olhos e foi até a livraria onde aconteceria o evento de autógrafos. Estava nervosa e ansiosa, pois nunca havia feito algo assim antes. Olhou a mesa cheia de exemplares do seu livro e custou

A roda da vida gira

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Cerração que baixa, sol que racha já diz o velho ditado que todo porto-alegrense repete, especialmente nesta época do ano quem que se respira água. E se vê o sol, feito bola de luz, redondinho, no meio das nuvens cinzentas, como querendo afirmar que sim, é o dono da cidade. E por mais frio que faça, já se sabe que o dia reserva um tempo de calor. Mais tarde. Assim como na vida. Tem aqueles tempos que tudo escurece, não se enxerga saídas, dá uma vontade doida/doída de virar para o lado, se tapar com a coberta e dormir até nunca mais. Mas eis que a vida nos lança para fora, o sol aparece, os pássaros gritam em sua dança de namoro e a chama reaparece. Não a toa nestes momentos de luto da alma, aparecem simbolismos e mensagens que nos tocam lá no fundo. Parece clichê de autoajuda, e é. Mas a vida é um turbilhão de clichês sentimentaloides que somos racionais até por ali. Nossa massa é feita de sangue, suor e vontades. E sentimentos. E ânsias. E sonhos. E toda aquela matéria que nos conform

Adeus minha bichaninha

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  Nunca mais seu miado exigente. Seu rabo petulante em pé, exigindo atenção. Meu olhar fugidio teima em te enxergar nos meandros das sombras, como se fosses ressurgir da morte que acompanhei até o último suspiro. Não é fácil se despedir de uma companheira de quase 14 anos. Quando tu chegou aqui era pura orelha, muito feia, curiosa e faminta. Não foi amor a primeira vista. Como todas as fêmeas, fomos nos descobrindo aos poucos. Ambas assustadas com o inusitado. Ambas prementes do permanente. Amantes do cotidiano. Fomos crescendo em vivências e carências até que nos descobrimos parceiras. Tu sargenta. Eu relutante. Tu cheia de personalidade. Eu cheia de senões. Tu gata que se descobria bela. Eu ainda sem me desnudar. Embora soubesse que irias mais cedo que eu, ainda relutei aceitar que seria tão rápido. Não reconheci os sinais. Perdão. Não te dei a atenção que merecias nos momentos finais. Até nisso tu me ensinou. Achei que não teria a coragem de estar contigo até o fim. Tive. Espero que

Escolhas

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  Escrevo 13 de janeiro em um ato falho de quem se permite começar o ano de novo. E de novo. E de novo. Quantas vezes achar necessário recomeçar. Sabendo que meus passos andarilhos talvez nunca cheguem ao porto de partida. Não seria o de chegada? Outro ato falho de que minha vida líquida se faz de voltas ao ponto de origem? É isso que o amanhecer deste dia mais gelado de junho me faz querer ver? Que mais importante que a colheita, é a semeadura? Que a vida se faz de jornadas infinitas e infindas de procuras e achados? Bom dia novo dia, então. Descubro que a inspiração vem de manhãs carregadas de um sol nascente, que faz aquarelas em nuvens acobreadas, lançando raios quase transparentes. Apenas entre vistos por quem tem tempo e olhos de ver. Para quem não sai apressado para lutar pela sobrevivência que a vida é resiliência e construção. E escolhas. Diárias. Infinitas. Infindas. Busco o copo d'água com os olhos. Sei que está vazio e tenho que repor o líquido que me compõem em sua mai

A história de Ana e Pedro

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  Este casal de mãos dadas pela praia ao entardecer são Ana e Pedro. Ana é uma mulher bonita e elegante. Seus 58 anos bem vividos contrastam com uma pele bronzeada, cabelos loiros curtos e grandes olhos azuis. Seu sorriso encanta a quem a conhece, assim como sua voz suave que muitos amigos alcunham de “voz de locutora de FM”. Como ela é advogada de uma grande empresa, respeitada e admirada por todos, essa voz lhe ajuda nas defesas, pelo tom límpido e agradável. Ela é casada com um homem também bem-sucedido como ela. Político de renome, Miguel, é paciente e generoso. E juntos construíram uma bela família, com uma filha e três netos, que são sua alegria e seu orgulho. Pedro é um homem charmoso e inteligente, de cabelos grisalhos e olhos verdes. Tem 60 anos, um olhar penetrante e uma voz firme. É médico de um renomado hospital, reconhecido e elogiado por todos. Atua no campo de pesquisa em reumatologia, escreveu vários livros e é requisitado para ministrar cursos e palestras em várias par

Entre sonhos e novelos

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Um sonho. Uma casa de esquina. Formas esquisitas. Era feita estruturalmente de arcos de material orgânico. Parecia uma costela humana deitada, preenchida com lonas e vidros translúcidos. Eu e meu pai já falecido cheios de curiosidade entramos na casa, sem nem pedir licença. Meu pai me visita poucas vezes em sonhos. Sempre mais jovem do que quando partiu. Tem a aparência da minha lembrança de criança. Sempre fomos curiosos os dois. A casa tinha uma rampa interna por onde se subia aos espaços que eram amplos e inter-relacionados. O dono da casa, um arquiteto que mal conheço virtualmente, veio nos receber. Em uma cadeira de rodas. Nos guiou pelos espaços internos, explicando como tinham sido feitos. Do nada, apareceu minha mãe que pediu para ir ao banheiro social. Um estranhamento no homem da cadeira de rodas que morava na casa que lembrava uma costela. Não existia banheiro social. Só o íntimo porque a casa era dele e da esposa. Esta gentilmente nos guiou rampa abaixo e abriu uma porta pa

Ausências

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  Toda vez que saia às ruas notava algo diferente. As pessoas conhecidas iam desaparecendo. Lentamente, é verdade. No início. À medida que o tempo passava, a velocidade dos sumiços foi aumentando. Primeiro foi a simpática mãe do verdureiro. D Inácia estava sempre no caixa, sorrindo para os clientes. Um dia se foi. Depois o chaveiro, seu Manoel, português da Chamusca, que vivia sorrindo e cantando as boas de sua terrinha. A gerente da farmácia que sempre lhe atendia. O garçom do restaurante. O vizinho do térreo. Ninguém mais falava neles. Ouviu falar aqui e ali de colegas de infância. Ficou difícil sair às ruas. Tinha medo das surpresas. Começou a ficar com medo. Trancou as portas. Não atendia mais os telefonemas no único telefone fixo que sobrara. Passou a não ir ao super. Comia e dormia mal. Dispensou a faxineira e não pegava mais sol nas caminhadas que tanto gostava. Um dia se deu conta que ela também tinha sumido. Ninguém tinha notado.

Acendedora de almas

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  Tinha uma sensibilidade extremada com situações de vida que envolvessem sentimentos, escolhas e mortes. Por mortes entenda-se a finitude. Seja a física, mental ou espiritual. Sua alma cansada vivia entre o pragmatismo sobrevivente e a loucura bailarina. Este frágil equilíbrio a tornava permeável aos sofrimentos e aos pensamentos alheios. Uma leitura mais atenta a um drama de alguém a fazia sentir agulhadas em seu próprio sentir. Urgente mudar essa empatia atroz em um mundo onde ela rareava a cada dia. Se pudesse engarrafar e vender, como essência, para quem dela se afastara. Ou quem nunca tivera intimidade. Podia organizar um curso, algo tão em voga. Mas como ensinar a sentir quem não detinha tal habilidade? Por mais teoria que pudesse entulhar a mente de alguém, era bem diferente de acender almas.

Ando meio desligada

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  As palavras me faltam. No meio do raciocínio, brancos latentes me entontecem. Os termos, antes tão familiares e amigáveis, saltavam feito borbotões. Na escrita, no meio do flow criativo, surgiam como visitantes andarilhos se imiscuindo nas sendas da vida. Alguns semi desconhecidos que, indo procurar nos dicionários, faziam todo o sentido. Em algum lugar da memória tinham se alojado para serem colocados à luz quando necessário. Minha mente era ágil. Eu era tão mais jovem. Hoje ando meia desligada. Não consigo dar conta de tanta informação. Rareiam as certezas absolutas. Não consigo mais acompanhar a rapidez dos acontecimentos. Não nasci para esta era que anda a jato. Meu tempo é dos passos firmes no chão. Caminhadas em torno da lua, das quimeras e dos andaimes que constroem com passos lentos as edificações de vida. Tomo água porque nosso corpo é feito basicamente dela. As nuvens que antes queria tocar com meus dedos infantis, correm céleres nos céus e delas observo, fascinada, o bale.