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Mostrando postagens de abril, 2020

Caindo a ficha

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  Parece que foi no meio de março que a vida mudou. Não lembra direito, faz tanto tempo que não vê ninguém ao vivo. Os contatos são pelos meios digitais, já participou de mais festas e viu mais lives que em todo tempo de antes. Lembra de que sentiu um premonição. Se fez mais ardente no ultimo beijo, se fez mais meiga no último abraço. Depois o medo. As notícias desencontradas. As brigas de poder. As mortes. Antes só especulação. Mesmo assim os cuidados. Quase compulsivos. Lava a mão, se entope de álcool gel. Grita com quem entra de sapatos. Fica quase pelada ao voltar da rua. Vai deixando de ir. Pede tudo pelo telefone. Primeiro lava tudo, alguns deixa de molho uns três ou quatro dias antes de consumir. Nunca gastou tanto. A internet se tornou refúgio. Chorou e brigou com gente que não estava nem aí. Tão trancados como ela, que eram todos do grupo de risco. Duas semanas de medo de andar nas ruas pelo movimento deserto. Só o barulho das ambulâncias cruzando. Depois

Antônia e Alice, as outras mulheres de meu avô

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Antes de casar com minha avó Doralice , meu avô Bartholomeu teve duas outras mulheres. Oficiais. Em 1898, depois de passar alguns anos estudando em São Paulo e sendo diretor do colégio distrital de Taquara do Mundo Novo, ele se casa com Maria Antônia Jaeckel ( Iaeckel, Jackel, Jeckel podem ser outras formas de grafia do sobrenome). Era nascida na Bohemia, que  naquela epoca fazia parte do império austro húngaro. Atualmente o reino da Boemia é a república Tcheca. Seus pais Henrique Jaeckel e Helena Weiss provavelmente fizeram o mesmo trajeto que a família do jovem Bartholomeu fez em algum momento depois de 1875, ano do nascimento de Maria Antônia.  Ela tinha 24 anos quando se casaram, no dia 6 de agosto de 1898, na matriz de Santa Catarina da Feliz. Seus pais já tinham morrido na ocasião e como padrinho teve Ricardo Jaeckel, talvez seu irmão.  O casamento foi feito pelo vigário Max Von Lassberg, um padre jesuíta alemão, com uma peculiar predileção pela vida na n

andorinhas ausentes

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No meio da quarentena conheci Manoel de Barros. Podem achar graça ou até perguntar quem é.  Há os que vão sorrir gritando: o poeta! Tenho meus dias de poesia. São momentos em que preciso de lírios verdejantes na insolente monotonia. Oscilo entre o mergulho na janela que me fascina ao voo da andorinha que brinca com as nuvens. Delicado meu equilíbrio. É uma tecitura delicada que conforme o ponto, desanda. Ou sublima. Sempre fui dos cá dentro. Ficar reclusa nunca me aborrecia. Até quando. Deixou de ser escolha. Virou prisão. Precisão de cuidados. A vida mata. O amor vira navalha como disse outro poeta que outra peste levou mais cedo. Nem as nuvens se mexem em um céu congelado. Meu sangue frio parece ferver. Algo em mim se fez tristeza. Recomeço o delicado equilíbrio de me reerguer. Cada um de nós oscilantes, procurantes, barrosos de poesia. Carentes de colo e vida na rua. Olho ruas vazias e sinto um aperto. Olho ruas com gente e sinto o

Angústias da CTI que já vivi

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O barulho dos aparelhos que mantém um ser amado à vida em uma UTI são inolvidáveis. Assim como a sirene da ambulância que cruza a cidade em uma corrida de vida e morte. Já passei por isso. A angústia de noites esperando e temendo uma ligação. Esperar boletins médicos com a sofreguidão das decisões. Ver aquela pessoa tão querida, imóvel em uma cama, toda amarrada por fios e aparelhos, com tubos que respiram por ele.  Aprender a conhecer cada bip, cada remédio, cada sinal dos batimentos.  Aguardar nas salas de espera, uma pós graduação de vida de verdade. Compartilhar com gente que não se conhece a mesma esperança sofrida que se renova ou esgota a cada visita. Fazer fila na porta, aguardar o sinal verde e percorrer passo a passo em direção ao leito, sem saber o que esperar. Aprender a viver cada dia. Cada movimento de olho, suspiro, respiro. Cada olhar e fisionomia das equipes médicas.  Segurar na mão da pessoa sedada. Falar com ela, sem saber se nos escuta. Lutar junto. Reza

Leveza - memórias da pandemia

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O mundo desmorona e estou fazendo máscara de clara de ovo no rosto para repor o colágeno. Sei lá se funciona, a crença já ajuda bastante. Se cuidar, se sentir bonita, respeitar pequenos rituais de saúde emocional ajudam a tornar as situações mais palatáveis. Mudam? Não. Mas ajudam a enfrentar com mais energia. Se não dá para mudar, contorno. Lições do meu pai solar e da minha mãe pragmática (e poeta) virginiana. Ontem foi dia de poesia, leituras sobre a Idade Média e uma live com sobreviventes do holocausto. Vocês acham que estamos no caos? Nós, em nossas casas, muitos com comida e TV a cabo? Escutem quem perdeu tudo, família, infância, referências e continua de pé. Com suas dores e a vontade de esquecer. Mas não. Continuam falando para que não se repita. Todos os que foram chacinados, os que foram torturados,os que não eram aceitos.  Não pq fossem bandidos, mas pq eram negros, judeus, muçulmanos, ateus, cristãos. Mudam os tempos e os motivos, a maldade e a omissão human

O dia que a igreja pegou fogo

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Enquanto olhava as labaredas que destruíam a matriz onde há uma semana se casara, Rafael lembrou de dois fatos. Uma que o cônego era uma figura esquisita. Embora bastante atuante na cidade em questões beneméritas, algo em seus olhos miúdos, vistos através de óculos de grandes lentes, brilhava com uma cupidez que não ficava bem em sacerdotes. Parecia muito mais interessado nas questões monetárias que nas de salvar almas. Poderia ser apenas uma impressão, Rafael não saberia dizer. Mas confiava em seus instintos.  Era um dia escaldante de verão na pequena cidade do interior gaúcho. Mal começava a cair a noite, todos se preparavam para mais um casamento na antiga Matriz. Bem verdade que alguns cupins se notavam aqui e ali, mas seus corredores ainda guardavam a velha imponência de antigos tempos. As velas ornamentavam o altar que era ricamente adornado com objetos de puro ouro. A riqueza das peças contrastava com a premente necessidade de reforma do madeirame e do prédio. T

Bolinha de ilusão

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"Foi então que eu vi Como era bom brincar Com bolinha de sabão" Bolinhas de sabão cantava um trio da minha infância chamado Esperança.  Bolinhas de sabão fazia minha mãe ao me dar banho quando eu tinha uns três/quatro anos. Banheiro preto e rosa. Boxe banheira. Ela sentada no chão, rindo com seu sorriso gostoso e brincando. Minha mãe brincava. Sempre foi moleca. Conta-se que quando namorava meu pai, tirava os sapatos ( os únicos que tinha) e andava na rua molhada pela chuva com pés descalços.  Tinha 14 anos. Ele 18. O mundo ia iniciar uma Guerra Mundial.  Eles, um amor que durou mais de sete décadas. Minha mãe nos dava sustos com papel de pão. Ela enchia de ar e sorrateira arrebentava quando menos esperávamos. Falava palavrão e ria muito. Tinha sempre uma tirada irônica e certeira. E fazia bolinhas de sabão para que eu gostasse do banho. Eram momentos nossos, cheios de encantamento. Ela me incentivava a fala

Das Páscoas sem isolamento

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Coelhinho da Páscoa, que trazes prá mim? Um ovo, dois ovos, três ovos assim... A guria loirinha, de grandes olhos escuros, morava em uma casa grande, com janelas muito altas, onde as paredes cresciam na medida de sua escala. Tudo era bonito. Morava com seus pais e irmãos em uma cidade ainda pequena do interior gaúcho. Novo Hamburgo. Sua casa era palco de muitas festas e encontros. Até banda de música tinha entrado em um Natal ou Carnaval, não lembrava direito que aos quatro ou cinco anos, a noção de tempo é muito diferente. Bem que o primo mais velho, servindo no exército, tinha lhe dito um dia: não queira crescer rápido. Um dia, quando fores mais velha, vais entender que vives agora os melhores momentos de tua vida. E vais lembrar do que te digo. Lembro sim, primo. Mesmo que os calores dos debates de ideias que vivemos mais tarde tenham nos afastado. Naqueles dias não havia afastamento. Nem isolamento. Os muros serviam apenas para delimitar os terrenos, porq

Me sinto na Idade Média

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Sempre adorei História. Devorava livros da biblioteca de meu pai, que também gostava de história. Via filmes de época e corria para ler sobre aquele período para saber o que era verdade e o que não era. Um hábito bem salutar que me fez aprender mais. Ou ver mais versões. Lembro de uma série de amava ver nos anos 60. Passava na França, no que a gente chama de Idade Média. Thierry La Fronde  era, para mim, uma espécie de Robin Hood gaulês.  Gostava também das histórias do Rei Arthur e sua Távola Redonda. Anos mais tarde devorei os livros das Brumas de Avalon, misturando magia e simbolismos. Mas quando me perguntavam em que época da humanidade gostaria de ter vivido, juro que nunca minha escolha seria por essa época.  Imaginava mulheres reclusas em seus castelos, sem muitos direitos, gente ignorante, muita miséria e vassalagem. Locais onde a ciência era vista como magia, onde se colocavam pessoas nas fogueiras pelos autos de fé. Um período que atacou conhecimentos antigos e cal

Dando adeus ao inferno zodiacal

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Durmo toda noite sonhando  acordar em outro universo. Nunca acontece. Cada dia estou no mesmo olhando o mundo através da minha janela Tentando sobreviver entre os cuidados e a paranoia Mas não se vive assim para sempre É preciso resgatar a esperança Assim me concentro no foco da luz minha maneira de enfrentar a incerteza Menos acúmulo de notícias o suficiente para me informar Só Faço lista de afazeres possíveis de fazer online dentro de casa Vejo séries bobinhas, leves Ainda não consigo ler com profundidade Meus livros me olham, cúmplices, entendendo meu momento Me pego mesquinha Me sinto na primeira classe do Titanic ouvindo a orquestra enquanto o bote me aguarda Vejo montes de generosidades gente que doa gente que vai gente que ajuda outras gentes do jeito que dá Gotinhas no oceano que formam ondas O mundo nunca mais será igual se vai ser melhor depende de cada um de nós Meu inferno zodiacal vai se findando Meu