O dia que a igreja pegou fogo
Enquanto olhava as labaredas que destruíam a matriz onde há uma semana se casara, Rafael lembrou de dois fatos.
Uma que o cônego era uma figura esquisita. Embora bastante atuante na cidade em questões beneméritas, algo em seus olhos miúdos, vistos através de óculos de grandes lentes, brilhava com uma cupidez que não ficava bem em sacerdotes. Parecia muito mais interessado nas questões monetárias que nas de salvar almas. Poderia ser apenas uma impressão, Rafael não saberia dizer. Mas confiava em seus instintos.
Era um dia escaldante de verão na pequena cidade do interior gaúcho. Mal começava a cair a noite, todos se preparavam para mais um casamento na antiga Matriz. Bem verdade que alguns cupins se notavam aqui e ali, mas seus corredores ainda guardavam a velha imponência de antigos tempos. As velas ornamentavam o altar que era ricamente adornado com objetos de puro ouro. A riqueza das peças contrastava com a premente necessidade de reforma do madeirame e do prédio.
Todos na cidade já tinham pensado na possibilidade de fazer a tão sonhada reforma. O cônego não. Ele queria uma igreja nova. Já tinha contatado com a diocese para mostrar que a cidade fazia por merecer uma edificação que retratasse o tamanho da fé local. Mas ninguém tinha lhe dado atenção.
Enquanto olhava sua igreja, preparada para o casamento naquele sábado de janeiro, mirou de relance o presépio. Natal passado tinham mudado de local e o menino Deus estava colocado justo embaixo do sacrário. Fora ideia dele, logo adotada pela chefe das beatas. Uma senhora de feições rígidas, completamente alemã, como ele. Tinham uma sintonia celestial. Não fosse a questão do celibato, poderiam ter feito um casal quase perfeito. Quase porque ela era de muita fé, mas pouca beleza física. Seu corpo parecia uma barrica de vinho e sua voz era fina como açoite em noite escura. Fora isso era até simpática. E muito prestativa.
Logo o padre se posicionou na frente do altar, ao lado do noivo. Os convidados seguiam rapidamente para seus lugares, todos apressados, esperando a noiva que devia estar quase chegando. Foi quando se fez ouvir a voz grave do religioso:
Todos na cidade já tinham pensado na possibilidade de fazer a tão sonhada reforma. O cônego não. Ele queria uma igreja nova. Já tinha contatado com a diocese para mostrar que a cidade fazia por merecer uma edificação que retratasse o tamanho da fé local. Mas ninguém tinha lhe dado atenção.
Enquanto olhava sua igreja, preparada para o casamento naquele sábado de janeiro, mirou de relance o presépio. Natal passado tinham mudado de local e o menino Deus estava colocado justo embaixo do sacrário. Fora ideia dele, logo adotada pela chefe das beatas. Uma senhora de feições rígidas, completamente alemã, como ele. Tinham uma sintonia celestial. Não fosse a questão do celibato, poderiam ter feito um casal quase perfeito. Quase porque ela era de muita fé, mas pouca beleza física. Seu corpo parecia uma barrica de vinho e sua voz era fina como açoite em noite escura. Fora isso era até simpática. E muito prestativa.
Logo o padre se posicionou na frente do altar, ao lado do noivo. Os convidados seguiam rapidamente para seus lugares, todos apressados, esperando a noiva que devia estar quase chegando. Foi quando se fez ouvir a voz grave do religioso:
-Saia da minha igreja!
Todos pararam e se olharam. Meio assustados, pensando quem deles tinham ferido alguma lei canônica.
O jovem casal que entrava na nave principal olhou para os lados. Rafael, do altar, os acompanhava. Era o segundo fato que ficara marcado em sua mente. Eram os padrinhos, ele gerente de banco, embora jovem era autoridade no pequeno lugarejo. Ao seu lado, com um lindo vestido preto com transparências, última moda naqueles anos da década de 50, sua bela e elegante esposa.
Não eram muito crentes, na verdade o ato de frequentar a igreja era mais por obrigação social e profissional. Ele, muito alto e magro, era muito falante e simpático. Ela era de uma beleza estonteante. Sem maquiagens, com um olhar melado e um sorriso maroto. O padre já os tinha visto com seu casal de filhos pequenos. De certa forma, tinha inveja de quem podia levar uma vida terrena, longe das obrigações religiosas que tinha se imposto.
Cedo saíra de casa e fora estudar no seminário. Desejo de sua mãe, uma imigrante muito devota que quase tinha morrido na travessia de veleiro e prometeu aos céus o pequeno que se agitava em sua barriga.
Não fora vocação, mas se acostumara ao ofício. Até gostava de ter o poder de dar bençãos e julgar quem pecava mais ou menos. Era intransigente com a moral e os bons costumes. E ai de quem os transgredisse em sua paróquia.
Na nave da igreja ornada para o casamento o jovem casal olhou para os lados e continuou a entrar. O padre largou Rafael sozinho no altar e correu para o corredor de dedo em riste. Você! Disse apontando para a jovem e bela mulher de vestido transparente preto. Saia da minha igreja, sua despudorada!
Todos pararam. Poderia se ouvir o vento se soprasse. A chama da lamparina sobre o sacrário se moveu mais forte com a corrida do religioso.
Não sai! Gritou o jovem marido, segurando sua lívida esposa.
Ambos se encararam com destemor. Ambos se enfrentaram com a audácia dos que se acham donos da razão.
O silêncio começou a dar lugar ao murmúrio dos presentes. Do estupor e susto, um sentimento de curiosidade começou a percorrer o templo. O que poderia acontecer?
Uns minutos se passaram com os homens se encarando com tensão.
A turma do deixa disso se acercou e tentou apartear. Sem sucesso.
Vamos resolver lá fora, disseram os dois quase em coro.
Ninguém se moveu. Nem o noivo. Rafael só foi saber de tudo após o desfecho.
As vozes alteradas, o jovem casal gritava. O padre gritava. O marido, em um último momento de lucidez, disse que só não metia a mão na cara do padre porque ele usava batina. O cônego chegou a fazer um gesto para retira-la mas lembrou que só usava cuecas por baixo dos paramentos - maldito calor!
Parece que alguém conseguiu acalmar a cena. Alguns disseram que foi a beata que sussurrou algo no ouvido do padre. Outros que o gerente se lembrou de sua carreira, sua mãe que era católica e como era mais jovem e forte que o padre, não quis se prevalecer. Pegou sua maravilhosa esposa e se foi. O padre ainda conseguiu olhar pela última vez para o vulto esguio, com as mais belas pernas que já tinha visto e fez o sinal da cruz, pensando em como satanás envia tentações para os homens de bem.
O casamento se fez com toques de estupor. Sem padrinhos.
Uma semana depois, já voltando da brevíssima lua de mel, Rafael foi acordado pelos ruídos das labaredas que se erguiam de forma majestosa, transformando em ruínas o antigo prédio. O padre não estava, tinha tirado férias, dizendo-se abalado pelos últimos acontecimentos. A beata chorava em um canto dizendo frases desconexas onde se entendia: vento, não tive culpa, chamas na palha do menino...dizem que nunca mais falou uma frase que fizesse sentido.
O gerente e sua apaixonante mulher foram motivo de piadas dos mais chegados. Diziam que era praga contra o padre mal educado. Virou folclore da cidade. O fato não abalou sua carreira, muito competente que era e ainda fez campanha para a reconstrução da igreja. Interessante que nunca acharam os ouros, mesmo fazendo rescaldo minucioso das cinzas. Alguma outra obra de satanás...
O padre? Ficou mais algum tempo na cidade, sempre mal humorado e agora, sem o respaldo da beata. Logo que passou um tempo protocolar foi ser capelão de um hospital.
Mas ainda se conta do dia em que os sinos tocaram pela última vez enquanto as chamas ardiam. Parecia que uma voz gemia pedindo socorro pela vida não vivida....
O jovem casal que entrava na nave principal olhou para os lados. Rafael, do altar, os acompanhava. Era o segundo fato que ficara marcado em sua mente. Eram os padrinhos, ele gerente de banco, embora jovem era autoridade no pequeno lugarejo. Ao seu lado, com um lindo vestido preto com transparências, última moda naqueles anos da década de 50, sua bela e elegante esposa.
Não eram muito crentes, na verdade o ato de frequentar a igreja era mais por obrigação social e profissional. Ele, muito alto e magro, era muito falante e simpático. Ela era de uma beleza estonteante. Sem maquiagens, com um olhar melado e um sorriso maroto. O padre já os tinha visto com seu casal de filhos pequenos. De certa forma, tinha inveja de quem podia levar uma vida terrena, longe das obrigações religiosas que tinha se imposto.
Cedo saíra de casa e fora estudar no seminário. Desejo de sua mãe, uma imigrante muito devota que quase tinha morrido na travessia de veleiro e prometeu aos céus o pequeno que se agitava em sua barriga.
Não fora vocação, mas se acostumara ao ofício. Até gostava de ter o poder de dar bençãos e julgar quem pecava mais ou menos. Era intransigente com a moral e os bons costumes. E ai de quem os transgredisse em sua paróquia.
Na nave da igreja ornada para o casamento o jovem casal olhou para os lados e continuou a entrar. O padre largou Rafael sozinho no altar e correu para o corredor de dedo em riste. Você! Disse apontando para a jovem e bela mulher de vestido transparente preto. Saia da minha igreja, sua despudorada!
Todos pararam. Poderia se ouvir o vento se soprasse. A chama da lamparina sobre o sacrário se moveu mais forte com a corrida do religioso.
Não sai! Gritou o jovem marido, segurando sua lívida esposa.
Ambos se encararam com destemor. Ambos se enfrentaram com a audácia dos que se acham donos da razão.
O silêncio começou a dar lugar ao murmúrio dos presentes. Do estupor e susto, um sentimento de curiosidade começou a percorrer o templo. O que poderia acontecer?
Uns minutos se passaram com os homens se encarando com tensão.
A turma do deixa disso se acercou e tentou apartear. Sem sucesso.
Vamos resolver lá fora, disseram os dois quase em coro.
Ninguém se moveu. Nem o noivo. Rafael só foi saber de tudo após o desfecho.
As vozes alteradas, o jovem casal gritava. O padre gritava. O marido, em um último momento de lucidez, disse que só não metia a mão na cara do padre porque ele usava batina. O cônego chegou a fazer um gesto para retira-la mas lembrou que só usava cuecas por baixo dos paramentos - maldito calor!
Parece que alguém conseguiu acalmar a cena. Alguns disseram que foi a beata que sussurrou algo no ouvido do padre. Outros que o gerente se lembrou de sua carreira, sua mãe que era católica e como era mais jovem e forte que o padre, não quis se prevalecer. Pegou sua maravilhosa esposa e se foi. O padre ainda conseguiu olhar pela última vez para o vulto esguio, com as mais belas pernas que já tinha visto e fez o sinal da cruz, pensando em como satanás envia tentações para os homens de bem.
O casamento se fez com toques de estupor. Sem padrinhos.
Uma semana depois, já voltando da brevíssima lua de mel, Rafael foi acordado pelos ruídos das labaredas que se erguiam de forma majestosa, transformando em ruínas o antigo prédio. O padre não estava, tinha tirado férias, dizendo-se abalado pelos últimos acontecimentos. A beata chorava em um canto dizendo frases desconexas onde se entendia: vento, não tive culpa, chamas na palha do menino...dizem que nunca mais falou uma frase que fizesse sentido.
O gerente e sua apaixonante mulher foram motivo de piadas dos mais chegados. Diziam que era praga contra o padre mal educado. Virou folclore da cidade. O fato não abalou sua carreira, muito competente que era e ainda fez campanha para a reconstrução da igreja. Interessante que nunca acharam os ouros, mesmo fazendo rescaldo minucioso das cinzas. Alguma outra obra de satanás...
O padre? Ficou mais algum tempo na cidade, sempre mal humorado e agora, sem o respaldo da beata. Logo que passou um tempo protocolar foi ser capelão de um hospital.
Mas ainda se conta do dia em que os sinos tocaram pela última vez enquanto as chamas ardiam. Parecia que uma voz gemia pedindo socorro pela vida não vivida....
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