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Mostrando postagens de fevereiro, 2019

A pequena e a foto

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O barulho da porta batendo com força contrastava com a calma do dia de verão. Era a pequena fugindo das fotos que pareciam animar o resto da família. Quando o fotógrafo contratado vinha em casa era uma festa, todos de roupas novas e prontos para as poses que os preservariam para a história. A pequena não. Resguardou-se no lugar mais seguro que encontrou, esperando o esquecimento de todos. As janelas altas da casa e o grande armário de madeira serviam de refúgio. A tarde passou, os sorrisos tomaram conta da casa. A pequena parecia ter evaporado. Quando o barulho das vozes cessou, ela falou com voz miúda, perguntando se o homem já tinha ido embora. O homem era o fotógrafo. No corredor largo da casa alugada, o pai respondeu certeiro: vem, está tudo seguro. A porta se abriu, devagar. Passinhos se fizeram ouvir no corredor. Tímidos a princípio, mais firmes quando viu a mão do pai lhe oferecendo apoio. Foi quando ouviu a voz que chamou seu nome. Seu rosto virou de imediato,

Cafezinho

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Quando você carrega uma vassoura é como se fosse invisível. Aprendi isso muito cedo. Já lhes contei que escutei segredos que fariam corar gente muito vivida quando trabalhei de faxineira em um convento? Mas isso faz parte do passado desde que vim servir cafezinho nessa empresa. Não que me torne mais presente, mas recebo uns sorrisos mais calorosos. O gerente geral, por exemplo. Bonito que nem galã de telenovela. Bem, talvez um pouco passado, mas gosto de homem mais velho, eles impõem mais respeito. Ele sempre sorri para mim, mesmo quando está em uma reunião mais acalorada. Cada palavrão que vou te contar! Também me sorri quando está no telefone. E sei direitinho, pelo tom de sua voz, quando fala com a matriz e quando sussurra para a filial. Mesmo homens distintos tem dessas coisas, nunca se detém em apenas um amor. -Açúcar ou adoçante? - Ainda me prestava a perguntar. Muito raro quem não posasse de "laite", este jeito moderno de dizer que se acha gordo e quer emagrece

Vox e o conto da aia - gritos e silêncios

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Se de repente uma onda retrógrada tomasse conta do país e limitasse a fala das mulheres a 100 palavras por dia? O excesso seria punido com dor. Talvez a dor da censura interna fosse até maior que a dor física dos contadores em forma de pulseira. Este o tema do romance distópico Vox que acabei de ler. Muito semelhante ao Conto da Aia , não tão bom quanto. Mas uma leitura rápida, não tão indigesta como o primeiro que me deixou realmente muito angustiada . Talvez já esteja mais calejada. A mensagem é a mesma: o horror acontece aos poucos, as pessoas que nada fazem seja por omissão, medo ou muito trabalho, acabam não apenas coniventes, mas também suas vítimas.  Das leituras necessárias, principalmente para os que perderam aulas de história e filosofia. Ao contrário do Conto da Aia, Vox tem claras referências aos tempos atuais e me pareceu ter sido escrito na esteira do sucesso do outro. Sucesso aliás que veio depois de quase três décadas do livro ter sido escrito. E por raz

A colecionadora de sorrisos

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Uma cidade considerada grande nem sempre mantém alguns hábitos de cidades pequenas. Um deles é o de conversar nas ruas. Este é um dos motivos porque gosto do meu bairro e particularmente do meu quarteirão. Aqui saio distribuindo bons dias e boas tardes para as pessoas que conheço nesses meus 40 anos de Porto Alegre. Sei que não é comum nesses dias já tão atribulados e desconfiados que vivemos. Essa semana, quando voltava do banco, encontrei uma senhora que conheço do antigo salão de beleza que já fechou as portas na onda da falta de dinheiro que abastece uma parte da população. Há os que tenham bastante, mas esses com certeza não moram na minha vizinhança. A senhora. Mais de 90 anos, vinha com seus orgulhosos cabelos brancos, passos firmes e carregando compras do super mercado. Mora só e mantém sua autonomia. Um prazer falar com ela. Eis que me apresenta uma outra senhora que também parou para prosear naquele encontro de calçada. E essa se apresentou com uma expressão que achei ado

Estelita dos grandes olhos meigos

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O século dezenove ia quase se terminando e tudo corria calmo naquela pequena cidade do interior do Rio Grande do Sul chamada Candelária. Menos na casa do Chico Bello. Mais um parto se aproximava, desta vez bem antes da hora esperada.  Ele e sua querida Anna Julia aguardavam mais uma criança para se unir às outras que faziam a festa de suas vidas.  Francisco já era um homem feito quando conhecera aquela jovem que lhe roubara o coração. Já não tinham mais os arroubos da juventude, é bem verdade, mas sua esposa ainda era jovem. Sorriu ao pensar em quantas noites ainda teria que esperar para te-la novamente nos braços. Foi quando ouviu os gritos da sua jovem cunhada.  Misturado aos choros de um bebê recém-nascido, ouviu as mulheres gritando e correndo apressadas, mostrando que algo não corria bem. Mas nem em seus piores presságios poderia imaginar que aquele parto prematuro fosse terminar de maneira tão trágica.  O dia terminava e com ele a sua vida ao lado de Anna Julia. 

Diálogo surreal entre duas almas que se julgavam gêmeas e se descobrem estranhas

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Um clima de complexidade paira na vida. Dependendo do bando ou tribo, cada qual com suas labaredas dirigidas ao opositor. Ninguém mais agregador. Todos muito crentes de suas certezas. No meio disso tudo, almas que conseguiam se encontrar, apesar de tudo. Torcidas contrárias, ideologias diferentes, fés e suas ausências, tudo isso administrado com bom grado, quando os hormônios tomavam a dianteira. Até que... Alguma novidade no jornal de hoje? As mesmas de sempre, desastres que são crimes, crimes que produzem desastres... Culpa daqueles que você curte. (Como assim? Culpa minha?) Argumento hipócrita este seu, quando eu usava em outros tempos, você me dizia que o passado não se mexe...e agora.. (Ela me contrapondo, tem que mudar isso daí) Você não vive a realidade do mercado, desemprego a mil, empresas quebrando, culpa de você sabe bem quem... Mas não era só flexibilizar a justiça do trabalho que mudava? Ia chover de emprego... (eu dizia que era a por