Vox e o conto da aia - gritos e silêncios

Se de repente uma onda retrógrada tomasse conta do país e limitasse a fala das mulheres a 100 palavras por dia? O excesso seria punido com dor. Talvez a dor da censura interna fosse até maior que a dor física dos contadores em forma de pulseira.

Este o tema do romance distópico Vox que acabei de ler. Muito semelhante ao Conto da Aia, não tão bom quanto. Mas uma leitura rápida, não tão indigesta como o primeiro que me deixou realmente muito angustiada. Talvez já esteja mais calejada.




A mensagem é a mesma: o horror acontece aos poucos, as pessoas que nada fazem seja por omissão, medo ou muito trabalho, acabam não apenas coniventes, mas também suas vítimas. 

Das leituras necessárias, principalmente para os que perderam aulas de história e filosofia.

Ao contrário do Conto da Aia, Vox tem claras referências aos tempos atuais e me pareceu ter sido escrito na esteira do sucesso do outro. Sucesso aliás que veio depois de quase três décadas do livro ter sido escrito. E por razões meio óbvias de haver um sentimento de apreensão com o crescimento de uma onda reacionária, até mais que conservadora, em vários locais do mundo considerado civilizado. 

Em Vox se misturam questões políticas e romance. O que não desmerece a crítica social, já que a vida é feita de atos cotidianos, o amor quando força impulsionadora de liberdade e verdade talvez seja dos sentimentos mais revolucionários que nos acomete. Não é a toa que fazemos loucuras em seu nome. 

Uma cientista renomada nos dias atuais, especialista em neurolinguística, leva uma vida de mulher recatada do lar ( e pasmem, essas palavras estão literalmente descritas no livro) tentando se acostumar ao falar sucintamente já que não mais que uma centena de palavras é permitida às mulheres. O seu tortuoso caminho de aprendizado a não se expressar é revelado pela sua contradição em querer salvar a filha pequena da dor, ao lhe impor em métodos de recompensa, o não falar. Duas mulheres, uma na agonia de desaprender a comunicar. Outra na experiência cruel de ter negado a si o direito de ser igual aos seus irmãos e já crescer limitada. Em meio a isso a dor física do castigo ao romper limites. E a dor moral, sempre pior, de se sujeitar ao arbítrio. 

Entre tramas de armas químicas para uma guerra global em que a mudez feminina é uma ante-sala para a dominação mundial, vemos argumentos de fanáticos religiosos e morais, que justificam seus atos com passagens bíblicas. E a omissão dos cidadãos normais, os que nunca quiserem se envolver, os que são assimilados e parecem concordar até que a barbárie lhes tome de assalto. E aí nada podem mesmo fazer. Até o grito lhes é negado.

A história poderia ser melhor tramada e o final deixa a desejar em profundidade, mas o alerta está dado.

No mesmo dia em que li o livro Vox, vi na web o filme sobre o Conto da Aia, feito em 1990, e que parece que nunca foi lançado no Brasil (se foi, nunca ouvi falar). Leva o nome de "Decadência de uma espécie". Fui conferir porque não tinha tido sucesso como a série que estourou em vários locais do mundo. Um dos motivos, talvez, porque em 1990 parecia muito surreal imaginar que algo assim poderia acontecer. Hoje não mais. 

Recomendo que leiam o Conto da Aia e vejam a série primeiro. O Vox seria uma leitura complementar. O filme que falei acima fica apenas como curiosidade depois de tudo isso. O diretor pecou em um ponto fundamental: a dualidade do ato e pensamento que fica bem claro no livro e série. A aia, que já não tem nome próprio, mas uma denominação de pertencimento a outrem, é aparentemente dócil e servil, na sua tentativa dolorida de sobrevivência. É dentro dela que o grito se faz. É dentro dela que explodem palavrões e resistências. É dentro dela que a barbárie não vence. 

É dentro de cada um de nós que o horror se combate. Há os que gritam nas ruas e assumem todos os riscos. Há os que silenciam na aparência, mas elaboram e se unem à mais consciências para que a voz nunca seja silenciada. 
The Handmaid's Tale


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