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Mostrando postagens de outubro, 2022

A boneca que espreguiçava

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  Estes tempos tive que escolher um objeto para relembrar a infância. Aos 65 anos, depois de várias mudanças de casas, cidades e até de estados, é difícil ter comigo objetos daqueles tempos. Mas tem uma que guardo. E levo onde for. Uma boneca que espreguiçava. Não é uma boneca de brincar. Aquelas eu demoli, cortando cabelos, pintando, dando injeções com canetas tinteiro. As que sobreviveram às artes infantis, foram doadas às sobrinhas e a quem as precisasse mais que eu. Menos a boneca que espreguiçava. Parecia uma bebê de verdade. O corpo molinho de fazenda, onde se encaixava o aparelho de corda que lhe dava um doce movimento, enquanto tocava uma canção de ninar. A gente girava a manivela e ela espreguiçava. Era pequena, com cabelos castanhos bem curtos, olhinhos miúdos e um ar de sorriso de criança satisfeita. Um vestidinho azul, com rendinhas, a tornava ainda mais delicada. Nunca teve nome. Era a boneca que espreguiçava. O que a tornava tão especial para mim? A minha vó. A minha vó p

Diário da Exclusão (um desabafo)

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Todos os dias as ideias me assomam. Tomam conta, se ramificam. Em seguida partem. Penso que descrever a lenta contagem dos minutos que restam de vida parece comiseração sem importância. A velhice chega para quase muitos. Nem tantos, é verdade. Para os chegam, traz declínio e exclusão. Uma vez li que a memória vai se indo porque a realidade do presente já não é tão bela como a do passado. Qual o valor de lembrar um tempo de dependência e falta de autonomia? Melhor lembrar o vigor, a infância, a segurança e a certeza do para sempre. Conviver com a decrepitude que vem inexoravelmente não é bonito. É necessário. A outra alternativa é altamente angustiante. Melhor aguentar cabelos brancos, pernas moles e falta de dentes.  A reclusão. A exclusão.   FOMO: Fear of missing out, ou seja, o medo de ficar de fora da festa, de ficar para trás e de perder a oportunidade ( fonte ) Li hoje em um texto sobre o metaverso na venda de imóveis. Dizem que é uma palavrinha do vocabulário de quem vive no mund

Quem cuida do cuidador?

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Acordei com uma saudade doída do meu pai. Daquelas saudades que cravam na carne, fazem a gente chorar, mesmo sem lágrimas. Algumas vezes com.  Me dei conta que foram muitas recordações nos dias pós Dia da Criança. E das coisas que sinto mais falta da infância é de ser cuidada. Não só eu, imagino. Acho que todos nós sentimos uma pontinha de carência dos tempos em que alguém cuidava de nós. Nossa alimentação, nossas feridas, nosso choro tinha colo. Mesmo quando não tinha e a gente guardava fundo no peito, já antecipando a adulteza que viria, ainda assim não nos era cobrado maturidade. A medida que crescemos, viramos cuidadores. De alguém, de coisas, de nós em última instância. Nossos pais viram filhos. Nossos filhos, sobrinhos, netos, toda essa nova geração que vem vindo exigem atenção. O mundo lá fora exige atenção. A vida urge atenção. E nós? Vez por outra dá uma saudade doída do tempo em que a gente era atendido. Acho que por isso lembrei meu pai. Ele cuidava. Estava sempre pronto par

9 micro contos fora da curva

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01 Ele atravessou a porta Ela não Por isso a saudade instalada 02 Eu sempre pronta tu nunca 03 A certeza da não resposta Mas a espera continua 04 Portas que fechavam Mas ela ainda continuava se perguntando por quê?  05 Era tarde? O relógio dizia que sim O corpo gritava que não 06 Confiava pela primeira vez Era uma real possibilidade de não criar vínculos Se sentia segura 07 A vida na frente em todo o seu tenebroso esplendor, ouvia a música. Corria parada mas não conseguia alcançar 08 Olho por olho, dente por dente.  Urgia seguir as leis de Deus.  Comprou a arma e se sentiu santa. 09 Vem, ele chamou como quem acena a um cão.  Não, ela disse com a libertação das felinas Os micro contos não são minha zona de conforto. Eu que sou acumuladora. De coisas e palavras. Concisão não é minha praia. Não muito. Não sempre. Dizer com economia pode ser dúbio. Mas não fazer desafios pode ser pior. Viver é arriscar. Mesmo que por poucas palavras. 

Cotidiano, caos e criatividade

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Deixei de escrever diários bem cedo. A primeira parada foi por um trauma de confiança. Meus escritos de sofrimentos juvenis foram lidos para a vizinhança por alguém que eu confiava. Foi horrível na época. Hoje, relendo o que escrevia, posso imaginar o quão patética devo ter parecido aos olhos de quem aspirava admiração. Tive outras tentativas, não tão reveladoras de minha alma. Presentemente uso os blogs para colocar para fora o que em mim transborda. Ultimamente bem menos. Muito menos. Assustadoramente menos. As palavras me fogem tão logo sento na frente de uma tela em  branco. É como se tivesse um botão de reset instalado que, acionado, apaga toda e qualquer inspiração. Na verdade falta o sentido. Nada parece fazer muito sentido nos dias de hoje. É como se eu instalasse um isolamento mental do mundo e seus caos. Como se a vida tivesse recomeçado a girar e eu ficasse na pandemia dos dias de olhar pela janela.  Não tive Covid, mas as sequelas de medos passados afloraram. Os anos de ter