Cotidiano, caos e criatividade

Deixei de escrever diários bem cedo. A primeira parada foi por um trauma de confiança. Meus escritos de sofrimentos juvenis foram lidos para a vizinhança por alguém que eu confiava. Foi horrível na época. Hoje, relendo o que escrevia, posso imaginar o quão patética devo ter parecido aos olhos de quem aspirava admiração. Tive outras tentativas, não tão reveladoras de minha alma. Presentemente uso os blogs para colocar para fora o que em mim transborda.

foto de Elenara Stein Leitão

Ultimamente bem menos. Muito menos. Assustadoramente menos. As palavras me fogem tão logo sento na frente de uma tela em  branco. É como se tivesse um botão de reset instalado que, acionado, apaga toda e qualquer inspiração. Na verdade falta o sentido. Nada parece fazer muito sentido nos dias de hoje. É como se eu instalasse um isolamento mental do mundo e seus caos. Como se a vida tivesse recomeçado a girar e eu ficasse na pandemia dos dias de olhar pela janela. 

Não tive Covid, mas as sequelas de medos passados afloraram. Os anos de terapias e trabalhos internos para conviver parecem ter se embolado junto com a administração interna de não cair na ira da polarização que nos faz odiar o que não conforta nossa convicção interna. Me tornei (mais) zen para não afastar meus afetos. Foi bom. Mas também não foi bom.

Na esteira dos cursos, lives e aprendizados que venho fazendo sofregamente nos últimos tempos, reencontrei velhas leituras: Rollo May em um livro que li em novembro de 1982 (sim, deixo datas, sublinhadas e anotações nos meus livros). Uma observação calhou exatamente com o que tenho sentido: 
 
"Quando tenho de escrever algo importante, fazer 20 minutos de meditação antes de começar o trabalho, o meu mundo se alinha demais, fica por demais ordenado. E então não tenho mais assunto para escrever. O meu encontro evapora-se. Meus "problemas" estão todos resolvidos. Sinto uma verdadeira beatitude, não há dúvida; mas não consigo escrever. Portanto, deve-se o caos, enfrentar a "complexidade e a perplexidade", como diz Barron. O caos me leva a procurar a ordem, a lutar contra ele até descobrir uma forma profunda e básica. Empenho-me assim no que MacLeish descreve como a luta contra o que não tem sentido, para obrigá-lo a significar; a luta contra o silêncio, para que responda, e contra o não-ser, para que seja". (Rollo May - A coragem de criar)

O mundo que um dia conheci, parece cada dia mais distante. Talvez eu nele esteja diferente. Posso me dar ao luxo de sentir e pesquisar minhas emoções, meus sentimentos, meus vazios. Meu mundo particular em confronto com o mundo de fora. O das pessoas. Os outros.

Nesse meu diário de tempos incertos volta a leitura de outro livro cuja personagem me servia como parâmetro em tempos de juventude. Lori, de Uma aprendizagem (amarga como sempre alcunhava, em ato nada falho). Também chamado de O livro dos prazeres. Um convite da Clarice, minha amiga de então, a mergulhar em um mundo que me assustava pela imensidão.

Dela uma frase: "Será o mundo com a sua impersonalidade soberba versus minha individualidade como pessoa mas seremos um só"(Clarice Lispector)

Eu e o mundo somos um só quando meu caos interno se transveste de significados, de contradições e embates que resultem em um sentido lógico, belo e complexo. 

Já ouvi que seres felizes não concebem obras primas. Talvez suas vidas o sejam em si uma realização que os complete. Mas de trás de cada criação, pequena ou grande, que impacta outros, existe uma complexa e elaborada teia de concepções únicas sobre os cotidianos vividos e sentidos. Essa teia individual, quando saída do fundo da alma, acaba por chegar a mais almas, formando uma onda maior, onde a individualidade fala a linguagem da colmeia.

Procuro em mim esse saudável caos interno que me afaste da sombria mediocridade de uma tela em branco, onde nada sai e nada compartilha.

Não nasci para criar textos para que algoritmos os compartilhem. Se algo de bom resulte do que sai de mim, será de ser humano para outros seres humanos. Tão ou mais caóticos que eu.

Porto Alegre, meio da tarde de outono de um dia ora belo, ora melancólico de um tempo em que a perplexidade toma conta e nada mais parece fazer sentido.     

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