A boneca que espreguiçava

 elenara elegante


Estes tempos tive que escolher um objeto para relembrar a infância. Aos 65 anos, depois de várias mudanças de casas, cidades e até de estados, é difícil ter comigo objetos daqueles tempos. Mas tem uma que guardo. E levo onde for. Uma boneca que espreguiçava.

Não é uma boneca de brincar. Aquelas eu demoli, cortando cabelos, pintando, dando injeções com canetas tinteiro. As que sobreviveram às artes infantis, foram doadas às sobrinhas e a quem as precisasse mais que eu. Menos a boneca que espreguiçava.

Parecia uma bebê de verdade. O corpo molinho de fazenda, onde se encaixava o aparelho de corda que lhe dava um doce movimento, enquanto tocava uma canção de ninar. A gente girava a manivela e ela espreguiçava. Era pequena, com cabelos castanhos bem curtos, olhinhos miúdos e um ar de sorriso de criança satisfeita. Um vestidinho azul, com rendinhas, a tornava ainda mais delicada. Nunca teve nome. Era a boneca que espreguiçava.

O que a tornava tão especial para mim? A minha vó. A minha vó paterna, a única que conheci, com quem tinha uma ligação dessas que a gente não explica, que vai além dos genes, essa avó adorava essa boneca. Lembro dela a ninando com um olhar doce, como se lembrasse do tempo em que meu pai e irmãos eram pequenos e ela apenas uma jovem que sonhava com a vida. A boneca que espreguiçava, nos braços dela, se tornava quase um bebê real. Eu amava a boneca pelo amor que sentia nos olhos da minha avó quando a ninava.

Minha vó Estelita, de grandes olhos negros, colo generoso e a quem eu chamava de velha, quando ela mais nova que eu hoje. Minha avó guerreira, que ficou viúva aos 24 anos de meu avô de olhos de águia, que morreu por seu ideal maragato e a deixou com quatro filhos para criar. O que ela fez pedalando uma maquina de costura que gemia até altas horas da noite. Que viu sua juventude findar, sem nunca perder a ternura. Minha vó que nasceu tão pequena, prematura, aos seis meses em um parto que levou sua mãe. E que foi criada no peito da tia, ela mesmo uma pequena boneca que se espreguiçava.

Um pouco depois que ganhei a boneca, minha avó me apareceu em sonhos. Não foi a única. Meu avô paterno foi também o fez. Um senhor de olhar bondoso, de roupas brancas, eu tinha uns três anos e lembro daquela imagem como se fosse hoje. Nos disse que tinha ido conhecer as filhas da Helena, minha mãe. Anos depois uma foto me comprovou que era ele. Mas quando essa avó me apareceu em sonhos, de pé ao lado de minha cama, me olhando, sem falar nada, mas falando tudo com os olhos, tive a mesma sensação. Vejo a imagem até hoje. Talvez ela quisesse me proteger, talvez quisesse se despedir porque em seguida adoeceu, voltou para a cidade natal porque não se podia fazer mais nada. Um dia o telefonema esperado chegou. Minha mãe não falou nada, só desligou e chorou. Eu também não falei nada. Engoli o choro que sinto aqui na garganta até hoje, fui para a sacada do apartamento que ficava ao lado do sino da catedral de Porto Alegre e senti minha primeira grande perda.

A boneca ficou ali, sobre a cama, se espreguiçando a cada vez que dava corda. Minha avó não a embalava mais. Não existe uma corda que reanime alguém que se foi.

Mas a memória guarda os afetos. A boneca sexagenária continua criança. E embala a minha que já tem cabelos grisalhos, enquanto se espreguiça ao som de uma canção de ninar.

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