Ariadne tecendo teias

Teço teias na esperança de 
reter-te.
Tu ficas. 
Me envolves em tua lábia de caçador, 
solta setas, 
me matas. 
Renasço. 
De ti guardo memórias que ninguém mais. 

Vida nova, novos olhares. Velhos sentires. Dúvidas iguais. Certezas absolutas. Ariadne corria solta pela sala, em desbragada dança, dessas que o vinho torna factual. Pela primeira vez em décadas se sentia só. O tempo era dela. 

Nem sabia mais o que fazer dele. Tanto tempo vivendo para outros. Sendo de outros. Afastando vontades, abrindo mão de desejos. Tecendo estradas para outros caminhares. Seu corpo marcado pela comida, único prazer solitário. O único que restara.

Mentira. Tinha as leituras. Mas nem essas. Lia mais por obrigação, os olhos correndo frases que pareciam não fazer sentido. Nada mais tocava. Só a urgência do desejo alheio. O que dela precisavam. Decisões, contas, sobrevivência alheia, carência dos outros. A dela sufocada. 

Tecia urgências. Suas teias se misturavam à gosma das outras vontades. Eram abraços que não queria. Eram horas que ansiava por ela. Era um egoísmo que teimava varrer para fora. Que se juntasse à poeira. Que ficasse abaixo da teia que já formava universos de tão grande. 

Tecia já nem pensando. Automática.

Hoje não. Hoje rasgava espaços. Hoje fluía gritos. Hoje ria sem motivos. Hoje era apenas Ariadne.

Cabelos brancos, mãos enrugadas. Corpo flácido. Desejo inflamado. Era toda presença. 

Que viesse Dionísio.

Que arrancasse seus trapos. 

Que a jogasse em prantos e gemidos.

Que se entregasse como sonha todo guerreiro.

Que caísse aos seus pés, vencido e dócil, esperando a fêmea que dela jorrasse.

Juntos iriam dançar e filosofar como fazem todos amantes que se anseiam. Guerra de olhares e seduções, estratégias de uma batalha onde todos vencem. 

A garrafa vazia. O vestido aos pedaços. A teia rasgada.

Hoje Ariadne tecendo teias. Amanhã quem sabe.


"Porque tu sabes que é de poesia
Minha vida secreta. Tu sabes, Dionísio,
Que a teu lado te amando,
Antes de ser mulher sou inteira poeta.
E que o teu corpo existe porque o meu
Sempre existiu cantando. Meu corpo, Dionísio,
É que move o grande corpo teu
Ainda que tu me vejas extrema e suplicante
Quando amanhece e me dizes adeus."


“Ode descontínua e remota para flauta e oboé. De Ariana para Dionísio”
Hilda Hilst,

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