Devoradora do passado


Belarmino, que era filho de Fermiano, casou com Francisca Rosalina e geraram aquele que seria conhecido como Chico Bello. Meu bisavô paterno. Deles sei pouca coisa. Algumas datas, registros de paróquias que me levam a ver que nasceram, casaram e procriaram. Como vem fazendo multidões antes e depois deles. Em algum momento que não consegui decifrar, os Joaquim de Oliveira viraram Oliveira Bello. Não apenas na tradição familiar, mas nos registros também!

Por que isso me importa? Porque fico horas a fio buscando respostas de um passado que não presenciei mas que ajudou a me tornar a pessoa que sou?
"Eu preciso devorar o passado, para não ser por ele consumido."A imensidão íntima dos carneiros - Marcelo Maluf 
Talvez a leitura desse livro de Marcelo Maluf me ajude a compreender essa busca. Embora estes avôs e avós que nunca conheci já estejam na poeira da memória, estão vivos dentro de mim. É como se eu fosse um elo de uma corrente que vem de milênios e me coubesse deslindar suas falas e emoções que estão escondidas nas páginas empoeiradas de livros velhos, resgatados por quem também busca outras respostas ou missões de vida. Não quero salvar suas almas. Acredito firmemente que já fizeram isso, eles mesmos. Apenas quero entender de onde vim e quem eram essas pessoas que foram plantando sementes até que eu surgisse.

Conto a história de Estelita e Doralice.  Julieta e Helena. Conto porque sinto em mim as vozes delas e deles, assoprando palavras que misturam realidade e ficção. Reconto suas vidas pelas versões que ouvi e pesquisei. Quem haverá de saber o que de fato aconteceu e o que virou lenda? Recontar histórias é como unir pedaços de retalhos. Cada detalhe tem uma cor e uma forma. Posso junta-los da maneira que achei ou posso tecer desenhos que, unidos, formem sentido e mostrem um pouco do que cada um representou.

Sim, devoro passados. Decifro letras ilegíveis, escritas há muitos anos, por mãos que já se foram. Decanto incongruências, tento misturar e sintonizar datas destoantes e entender as lacunas de documentos. Cometo erros. No afã de descobrir mais e mais, uso da criatividade para sintetizar o que poderia ter sido. Mais acerto que erro, é verdade. Intuição de DNA, quem sabe.

Seria o Belarmino bisavô, neto por sua vez de outro Belarmino Joaquim, este casado com Feliciana Maria? Qual dos Belarminos deixou terras em Cruz Alta em inventário, como li em uma pesquisa? Seria o Ferminiano o mesmo que quase foi nomeado por Bento Gonçalves capitão em 1835 ?
"A nós nos cabe apenas apreciar o canto que entoam e seguir como guardiões e servos, protegendo a sua jornada. Por isso, vive. Seja apenas aquilo que é. E não anseie por nenhuma verdade, além da compreensão da sua própria sombra”""A imensidão íntima dos carneiros" de Marcelo Maluf -
Qual deles está aqui, feito sombra ao meu lado, instigando minhas jornadas de descobrimentos? As Annas, Belmiras, Cândidas e Carolinas. Os Crescêncios, Nicolaus e Antonios. Todos ressurgidos de vidas que deixaram por alguém que nunca chegaram a imaginar existir.

Qual deles seria amável e generoso? De quem herdei certa teimosia que teimo em negar? Qual delas teceu toalhas, sonhadoramente, pensando no passado? Qual ergueu armas e lutou pela sobrevivência? Por que querem de mim esse resgate de vidas que se foram? O que esperam alcançar mais que eternidade? Seria isso a lembrança que rege os que como eu, devoram passados, sem recompensa maior que saber um pouco mais?

Criadores, tinham escravos, registrado está em suas fichas históricas. Quantos, como meu avô revolucionário, teriam lutado contra isso? Quantas morreram tão novas como muitas que vi em atestados de óbitos. Vinte anos, trinta anos. Vidas que passaram por parir e parir filhos que muitas vezes logo se iam. Que sonhos teriam essas minhas avós de ontem? Quanto ainda me falta para poder romancear histórias que sejam um pouco mais fidedignas com o que viveram?

Até lá, me resta cavocar e cavocar. Em mim e neles. Desenvolvendo a paciência dos eternos e a perseverança dos que prosseguem. Sendo estas talvez, as maiores recompensas no final.     

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