O xadrez e as obsessões


Você nota que tem obsessões quando aquilo começa a fazer parte compulsiva de seus sonhos.

Recordo de um conto que li, muitos anos atrás. Falava de um homem que fora preso e colocado em uma solitária. Tempos infindáveis sem nada que não fosse comida colocada por uma mão sem rosto. Pior tortura não havia, segundo ele. Um dia conseguira roubar, ou achar que o fosse, um livro.

Um livro! Passou algum tempo sem abri-lo, só antegozando o prazer de o ler. Mas quando, finalmente, se encheu de coragem, e conseguiu olhar, trêmulo de emoção, qual não foi sua decepção. Era um livro sobre jogadas de mestres de xadrez!

Entre a frustração de ter o que imaginava e sentido de sobrevivência de se arranjar com o que tinha, começou a ler. E aprender xadrez pela teoria. Guardou pedaços de pão e com eles formou peças. Repetiu estratégias Ad aeternum até não precisar de recursos externos e o jogo se passar na sua cabeça. Começou a caminhar obsessivamente pela cela, repetindo os movimentos, maquinando estratégias suas, jogando com ele mesmo.

Este conto de Stefan Zweig fala da resistência humana frente ao totalitarismo e de como nossas defesas podem mexer tanto conosco que nos marcam de modo trágico muitas vezes.

Na época em que li, nem cheguei a fazer essa relação, embora entendesse bem a angústia relatada nas suas palavras. Lembro apenas que meu pai relatara um sonho que tivera quando ele jogava xadrez em uma imensa praça e uma das peças era minha irmã, pequena na época da leitura.

Lembrei disso uns dias atrás quando me peguei fazendo algo que não fazia faz tempo. Jogar compulsivamente não xadrez, mas um desses joguinhos bobos de celular onde as peças se encaixam ao infinito. Esses que se vê as pessoas jogando mecanicamente em salas de espera, nas reuniões sociais ou em qualquer momento em que necessitem se isolar de algo. Por obvio chegou um dia em que sonhei encaixar pessoas da forma mais sensata ou possível, desencantada quando não conseguia enquadrar as cabeças no meu jeito de ver as coisas.

Freud explicaria. Ou a Gestalt, ou qualquer outro meio de compreensão de como a cabeça e os sentimentos mais profundos se expressem.

Como nos protegemos da barbárie? Do cotidiano que não faz mais sentido? Dos medos e temores que nos abatem e para os quais nossa alma, exaurida, não tem mais a tal de força de vontade de reagir...

Cada qual tem a sua resposta. Alguns aprendem algo, olham de outra perspectiva. Outros a transformam em obsessão.

Qual a minha? Qual a sua?

 

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