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A caixa de lápis e os detalhes que fazem a diferença

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Olho a caixa esquecida. São lápis de variadas tonalidades. Uns tem a ponta gasta, são os escolhidos. Outros estão intactos. São olhados, admirados, deixados em sua gloriosa imobilidade. Seremos nós assim? Partes de nós jamais tocadas, apenas contempladas à distância, como se fosse perigoso viver aquilo que nos completa? Nossas camadas esquecidas e intocadas serão também objeto de intensa admiração? Ou são apenas adiadas, como quem teme desvendar o próprio terror disfarçado de beleza? Nossos tocos, já gastos de tantas raspagens com gilete ou apontador, mostram que ali houve vida. Escolhas que marcaram trajetórias, iluminaram papeis. Talvez até choraram tinta sobre feridas mal cicatrizadas. Coloriram tanto que se gastaram. Nossos detalhes imergem indolores porque nossa alma é feita de detalhes. São estes que fazem toda a diferença. Os olhares que tocam sem invadir. As palavras não ditas. O abraço silencioso. O afeto sentido e não alardeado. Detalhes tão pequenos de nós dois...já dizia a ...

O peso dos olhos que se desviam

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    "Vivemos submersos no fundo de um oceano de ar" Evangelista Torricelli “Eu era olhada quando jovem. Hoje, mais velha, sou ignorada. “ Ouço isso e penso: o olhar que se desvia talvez seja mais violento do que o que julga. Porque o julgamento, ao menos, reconhece existência. A indiferença nos torna fantasmas antes da hora. Estamos em uma roda de conversas sobre o filme norueguês Sex ( da trilogia Sex, Love, Dreams ). Pessoas de classe média em uma casa de cultura. Pessoas privilegiadas por terem acesso à cultura em um país onde tantos carecem de comida e abrigo. Duas pessoas tinham morrido de frio porque dormiam na rua em uma semana particularmente fria. Faz frio neste país tropical, abençoado por Deus e bonito por natureza. Nem sempre. No filme Sex um dos personagens narra algo que lhe marcou e lhe fez agir de forma inusitada. Ele fala sobre a maneira como outro personagem tinha interagido com ele, o olhar que o tinha marcado tanto: “Nunca me senti olhado daquela maneira” ...

Não há mais reposiçao

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"Não há mais reposição."  Ouço esse comentário enquanto corto o cabelo. O espaço, hoje uma barbearia de franquia, já foi loja de móveis, já foi farmácia de manipulação. No burburinho dos ciclos econômicos e sociais que atravessam os bairros da minha cidade, Porto Alegre, assisto a uma sucessão de trocas, de portas que se abrem e se fecham com velocidade cada vez maior. A reposição comentada era sobre o fechamento de uma lancheira na mesma avenida. Soube que o dono, aquele senhor de cabelos brancos sempre à porta, que eu cumprimentava ao cruzar a esquina da Santo Antônio com a Independência, morreu. Nunca soube seu nome, embora o visse desde sempre. E o "desde sempre" aqui remonta aos anos 80. Soube que foi assaltado e brutalmente espancado. Pensei na violência que assombra a região, que assusta empresários, apressa os passos dos transeuntes. Inclusive os meus Morar perto da Avenida Independência é como viver entre fantasmas elegantes e ecos de risadas noturnas. Nos...

Por que amamos odiar os vilões — ou odiamos amá-los?

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Os vilões. Porque exercem tanto fascínio em nós, pobres mortais? Muitas vezes mais que os bonzinhos de plantão. Já me peguei pensando muito sobre isso. E confesso que nunca entendia muito bem a razão. Mas hoje, com essa chuvinha miúda e este sem paciência para um mundo caótico que nunca parece se encaixar, aqueles dias em que o café forte é bálsamo e muleta, pude compreender o que antes só raciocinava. E sim, tem uma baita diferença entre raciocínio pragmático e sentir com o coração e entranhas. O que me disse essa mistura de eu, café e música clássica que entra em mim feito a chuva que caí lá fora? Que os vilões, sejam os reais ou fictícios, costumam permanecer mesmo depois do fim das histórias. Eles não acabam com o fim do livro, da série ou da história. Eles permanecem, nos cutucam e de certa forma, nos fascinam.  Por que, afinal, gostamos tanto dos vilões? Porque são humanos. Dizem o que muitos gostariam de dizer. E só imaginam, tolhidos que são pela educação aprendida. E ...

Sou um modelo Adulta Premium

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Sou um modelo Adulta Premium. Como assim? Leio em uma rede social uma pessoa se auto definindo como um modelo premium, sugerindo uma série de características tipo: pago as contas em dia, sou organizada, lido bem com problemas do dia a dia, etc. Achei uma forma bem peculiar de se descrever e, como sou muito curiosa, por obvio pensei no que tenho como vantagens que me tornam uma adulta modelo Premium. Logo eu que sempre me defino como básica. Mas vamos lá. Em primeiro lugar o nome usado na rede era adultO Premium. Tenho dúvidas se o termo adultA Premium não vai tocar o lado quinta série de muitos por aí. Problema deles. Cresçam.   Prosseguindo após essa breve explanação necessária em tempos de pouca sutileza na interpretação de textos.  Não me confundam com a versão Deluxe. Essa vem equipada com todas as configurações avançadas em aperfeiçoamento estético, emocional e financeiro. E com promessa de felicidade pronta, desde que saiba utilizar corretamente (leia as letrinhas ...

Três Marias – Destinos Desiguais, Fardo Comum

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  Maria, Maria, é um dom, uma certa magia Uma força que nos alerta Uma mulher que merece viver e amar Como outra qualquer do planeta 1 Década de 1960 Em uma casa humilde, no interior do Brasil, nasce Maria dos Milagres. A primeira filha de muitos. Cresce em casa de barro, com muitos irmãos em escadinha e pouca comida. Aprende a cuidar dos menores e da casa ainda criança. Escola? Só até o 2º ano. Foi quando uma patroa de sua tia acenou com estudo na capital e lá se foi ela, cheia de esperanças. Perdeu-as no trabalho diário entre louças e mais crianças para cuidar. Os filhos da patroa. Em uma maternidade, nasce Maria de Fátima. Filha de um bancário e de uma professora, mora num bairro de classe média. Tem acesso a livros, brinquedos e estuda em colégio público de referência. Gosta de matemática e piano. Sonha com um futuro melhor enquanto brinca de casinha com bonecas e ajuda a mãe nas tarefas da casa. Em um bairro rico de uma capital, nasce Maria Antonieta. Tem um sobrenom...

De Woodstock ao WhatsApp da família: onde foram parar os rebeldes com mais de 30?

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  “Não confie em ninguém com mais de 30.” Frase curta, direta, quase um refrão. Imortalizada pela contracultura dos anos 60 e 70, ela ecoava nas rodas de violão, nas passeatas, nos pôsteres psicodélicos e nas faixas de protesto. Originalmente dita pelo ativista Jack Weinberg em 1964, durante o Free Speech Movement em Berkeley, a máxima expressava a desconfiança dos jovens em relação à geração mais velha, vista como cúmplice do poder, do conservadorismo e da opressão. A frase foi rapidamente adotada pelos movimentos de contra cultura mundo afora e, no Brasil, virou verso irônico e provocador na música Com Mais de 30 , de Marcos e Paulo Sérgio Valle. Uma canção que zombava da autoridade, ironizava os valores tradicionais e escancarava a vontade de autonomia, autenticidade e liberdade da juventude. Criticava não só os mais velhos, mas também a alienação urbana, a caretice institucional, o tédio existencial. Era um convite à invenção de novos caminhos, longe das fórmulas prontas. Mas...