Não há mais reposiçao
"Não há mais reposição."
A reposição comentada era sobre o fechamento de uma lancheira na mesma avenida. Soube que o dono, aquele senhor de cabelos brancos sempre à porta, que eu cumprimentava ao cruzar a esquina da Santo Antônio com a Independência, morreu. Nunca soube seu nome, embora o visse desde sempre. E o "desde sempre" aqui remonta aos anos 80. Soube que foi assaltado e brutalmente espancado. Pensei na violência que assombra a região, que assusta empresários, apressa os passos dos transeuntes. Inclusive os meus
Morar perto da Avenida Independência é como viver entre fantasmas elegantes e ecos de risadas noturnas. Nos anos 1970, quando voltei a morar na cidade depois de uma temporada em Brasília, essa artéria pulsava numa transição curiosa. Mansões altivas de uma antiga elite ainda resistiam, cobertas por heras e silêncios, enquanto edifícios modernos brotavam com pressa, tentando esconder o passado atrás de fachadas de vidro e concreto. O comércio era um mosaico vibrante: cinemas, lojas de renome, cabeleireiros famosos, aluguel de trajes para festas.
Mas o que realmente aquecia a alma da avenida eram seus pontos de encontro: o Encouraçado Butikin reinava como ponto de sucesso das noites porto-alegrenses. A Tia Dulce, com suas sopas, era refúgio após as noitadas. E a eterna Carrocinha do Rosário, bem na esquina do Colégio Marista, servia lanches e histórias desde quando ainda era comum esbarrar com o vizinho na rua.
Moro aqui perto há quase cinco décadas. Uma vida! De avenida glamourosa, a Independência se transformou em corredor de passagem. Sem locais para estacionamento, viu suas lojas finas darem lugar a outras de apelo mais popular. Algumas resistiram, até que a vida, ou a aposentadoria , levou seus donos.
O antigo cinema que passava filmes de arte foi substituído por uma farmácia que depois da pandemia foi fechada. Hoje ostenta uma melancólica placa de aluga-se enquanto abelhas e moscas pousam nas suas portas fechadas. As calçadas, que já viram senhoras e senhores de roupas alinhadas, hoje se entregam aos tênis, não por moda, mas por necessidade: são repletas de buracos e armadilhas urbanas, frutos de obras mal planejadas que pouco se importam com quem passa.
Lojas fechadas e pessoas em situação de rua dividem o mesmo chão. Quem anda apressado talvez não perceba, mas quem vive aqui sente: a Independência não é só uma avenida, é um caleidoscópio de memórias urbanas em constante reinvenção.
Depois de alguns dias sem andar a pé por ali, cruzei novamente a loja de lanches agora fechada e senti uma melancolia. A vida deteriora espaços e leva junto nossas referências afetivas. Porque os lugares por onde passamos todos os dias são pedaços da nossa própria história. Juntos, esses fragmentos formam um mosaico de pertencimento. E mais do que ruas ou esquinas, são os rostos que cruzamos que dão sentido à ideia de comunidade.
Imersa nesses pensamentos, parei na sinaleira. Vi uma senhora de cabelos brancos se aproximar, caminhando bem devagar. Parou ao meu lado. Sorrimos. Ela me perguntou se podia atravessar comigo, pois tinha medo dos degraus das calçadas. De mãos dadas, cruzamos a faixa de pedestres. Paramos e conversamos. Duas desconhecidas, moradoras da região há décadas. Nunca a tinha visto. Mas ah, a magia do sorriso e da pouca pressa fez o tempo parar. Trocamos memórias. Seus olhos muito claros e vivos, nas oito ou nove décadas que ela carregava, transbordavam beleza. Me confessou que estava proibida de sair sozinha, mas fugia de vez em quando. E sim, era lúcida, e jovem na arte de arrancar sorrisos, como disse gostar de fazer.
Pensei comigo que realmente não há mais reposição desses momentos plenos de encontro, sem pressa, sem medos ou inseguranças. Simplesmente duas pessoas se encontrando em uma avenida e parando para conversar pelo puro prazer de se conhecer. Isso faz uma cidade amiga das pessoas. Ou por outra, quem faz as cidades somos nós, seus habitantes. Que saibamos, apesar de tudo, continuar fazendo-as bonitas.
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