Três Marias – Destinos Desiguais, Fardo Comum

 

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Maria, Maria, é um dom, uma certa magia
Uma força que nos alerta
Uma mulher que merece viver e amar
Como outra qualquer do planeta1

Década de 1960

Em uma casa humilde, no interior do Brasil, nasce Maria dos Milagres. A primeira filha de muitos. Cresce em casa de barro, com muitos irmãos em escadinha e pouca comida. Aprende a cuidar dos menores e da casa ainda criança. Escola? Só até o 2º ano. Foi quando uma patroa de sua tia acenou com estudo na capital e lá se foi ela, cheia de esperanças. Perdeu-as no trabalho diário entre louças e mais crianças para cuidar. Os filhos da patroa.

Em uma maternidade, nasce Maria de Fátima. Filha de um bancário e de uma professora, mora num bairro de classe média. Tem acesso a livros, brinquedos e estuda em colégio público de referência. Gosta de matemática e piano. Sonha com um futuro melhor enquanto brinca de casinha com bonecas e ajuda a mãe nas tarefas da casa.

Em um bairro rico de uma capital, nasce Maria Antonieta. Tem um sobrenome respeitado desde as caravelas. Cresce em mansão com babá, governanta e aulas particulares. Viaja nas férias com a família, em geral para a Europa. Sua babá sempre a acompanha. Ouve que está sendo preparada para “ser alguém”, mesmo que não soubesse muito bem o que isso significava. Gosta de visitar sua avó, sempre tão chique, que lhe conta histórias da família enquanto dá ordens aos empregados da casa.

Década de 1970

Milagres: Na cidade grande, conhece um rapaz que trabalha no jardim da casa da patroa. Fica grávida aos 15. O pai da criança, assustado, some e ela continua a trabalhar como empregada. Quando o bebê nasce, é mandada de volta para casa e passa a ajudar a mãe a criar os irmãos, agora em maior número, enquanto embala o próprio bebê.

Fátima: Estuda muito, sonhando com uma independência que lê em revistas e ouve falar. Lê “O Segundo Sexo” de Simone de Beauvoir e “Uma aprendizagem” de Clarice Lispector. Participa de movimentos estudantis, escondida da família. Começa a namorar, mas sempre com metas claras: vestibular e liberdade. Enquanto estuda e sonha, ajuda as tias e avó com suas compras e assuntos bancários.

Antonieta: Estudou nos melhores colégios, viajou pelo mundo e começou a estudar Administração na melhor faculdade particular. Debutou no melhor clube da cidade, suas festas saem na coluna social. Aos dezoito ganha um carro zero de seus pais, tira a carteira de motorista. Se considera uma mulher à frente de seu tempo. Vai a bailes e namora rapazes “à altura”, como diz sua mãe, uma das dez mais bem vestidas da sociedade. Ajuda a mãe na administração da casa.

Maria, Maria, é o som, é a cor, é o suor
É a dose mais forte e lenta
De uma gente que ri quando deve chorar
E não vive, apenas aguenta

Década de 1980

Milagres: Já está com três filhos, cada um de um pai diferente, e trabalha em uma montadora de automóveis. Dorme pouco. Alimenta-se mal. Vive de favor na casa de uma tia. Não tem paciência com os filhos pequenos e cuida da mãe, em processo de demência precoce. Sente uma dor esquisita que não passa.

Fátima: Termina a faculdade, estuda enquanto trabalha em um consultório médico e passa em um concorrido concurso. Torna-se auditora fiscal. Casa-se com o namorado da faculdade. Compra um apartamento financiado. Já tem dois filhos, mas consegue contratar uma babá em meio turno e com isso, tem tempo para cuidar de si.

Antonieta: Formada com louvor, faz pós graduação em uma renomada universidade americana e assume um cargo na empresa do pai. Ainda não é levada muito a sério, e sempre tem algum homem que lhe pede, delicadamente, que sirva o cafezinho. Ou tenta lhe ensinar o que ela sabe de cor. Casa-se com um advogado que conheceu na pós. Tem filhos, babás e um personal trainer, o famoso André Pitombas.

Década de 1990

Milagres: Morando em uma comunidade da periferia, vê seus filhos entrando no mundo adulto cedo demais. Um já é pai aos 17. Ela agora cuida dos netos, dos filhos e da mãe, já acamada e esperando uma vaga para operação em um hospital público.

Fátima: Seus filhos estudam em um renomado colégio bilíngue. Todos os anos fazem viagens de férias em família. A última foi um cruzeiro pelo litoral do Brasil. A relação com o marido esfria. Ambos mergulhados em suas carreiras, fazendo cursos para manter o padrão financeiro. Começa a fazer terapia.

Antonieta: Viaja para a Europa com os filhos todo ano e compra casa na serra gaúcha, em um condomínio da empresa do seu segundo marido. Se torna referência em lideranças femininas empresariais. E acaba se envolvendo em causas filantrópicas. Em parte para preencher seu tempo já que os filhos se preparam para fazer intercâmbio. A única dúvida é para qual país vão. O mais velho opta pelo Canadá, apostando no futuro deste país. A caçula quer ir para a Austrália, um continente despontando no mundo. Ela sorri, com saudades de suas peregrinações de mochila pela Europa. E sorri enquanto ouve com paciência as crises emocionais do atual namorado.

Mas é preciso ter força, é preciso ter raça
É preciso ter gana sempre
Quem traz no corpo a marca, Maria, Maria
Mistura a dor e a alegria

Década de 2000

Milagres: Precocemente envelhecida, entra com pedido de aposentadoria por idade. Vive com salário mínimo e ajuda seus filhos, além de pagar pensão para o neto já que, seu filho sempre desempregado, corria o risco de ser preso por não honrar o compromisso. Convive com hipertensão, artrose e diabetes. Por dentro fica apreensiva e lembra que a mãe morreu com estas doenças. Entra para uma igreja e passa a contribuir com o dízimo para ver se Deus lhe ampara. Ajuda nas tarefas da igreja e se sente mais perto da união com o divino.

Fátima: Após anos de terapia, se separa, mas sem escândalo. Com a nova vida de solteira, passa a explorar viagens sozinha, retoma o curso de francês, abandonado na última gravidez. Pensa em acompanhar os filhos que agora moram fora. E ajudar a cuidar dos netos que, quem diria, serão cidadãos de primeiro mundo, pensa enquanto se dedica a escrever, outra de suas paixões deixadas de lado.

Antonieta: Já na casa dos 40 e sentindo, de leve, o passar da juventude, começa a reorganizar os negócios da família. Torna-se sócia dos filhos que propõem mudanças estruturais e tecnológicas inovadoras. Sentindo que a estão tratando como obsoleta, se matricula em cursos de atualização e logo está dando cursos na área. Inicia tratamento estético preventivo. Aposta em longevidade já que seus pais e avós ainda estão vivos e bem de saúde.

Década de 2010

Milagres: Já é bisavó. Ainda cozinha, lava e cuida da casa. Vários de seus amigos e amigas acabam morrendo cedo. Uns pela saúde precária, fruto de poucos cuidados. Outros pela violência do bairro onde mora. Ela acorda cedo e enfrenta filas do SUS e muitas vezes faltam medicamentos necessários. Frequenta um grupo de idosas da igreja. As “véias das terças” como se chamam carinhosamente. Lá vê palestras e ouve conselhos de vida. Mas fica pensando em para que mesmo viver mais? Para passar mais trabalho? Não tem tempo para divagar muito porque os netos lhe chamam e pedem mais um prato de sopa e ela pensa na desculpa que vai dar para dizer que não vai ter mais refrigerante aos domingos. Ah! Saúde! Lembra das palestras. Para alguma coisa serviram.

Fátima: Enfim conseguiu se aposentar com salário integral. Orgulha-se de se manter ativa. Vai à academia, faz aulas de pintura. Sente falta dos filhos, mas se orgulha deles ao ler seus e-mails de como a vida está indo bem. Tem um sítio, sua parte na partilha dos bens, é o seu paraíso onde cuida do jardim e da saúde mental. Está pensando em reunir amigas para cursos de biodança que está fazendo de especialização. Acho que seria uma boa terapia, pensa enquanto ouve rock. E ajudaria nas despesas dos pais que necessitam de seus cuidados.

Antonieta: Já é uma palestrante renomada em sua área de atuação. Uma referência em self made woman como foi citada em um recente blog especializado em finanças. Já fez harmonizações faciais com um famoso cirurgião plástico, embora mantenha segredo e evite dizer a idade real. Participa de conselhos empresariais. E usa aplicativos de namoro para conhecer pessoas. Em geral em viagens. Seus pais começam a dar sinais preocupantes em esquecimentos e ela já marcou consultas com geriatras, uma nova especialidade médica que parece estar se tornando necessária.

Entre 2020 e 2025

Milagres: Envelheceu cedo, com o corpo cansado de décadas de trabalho e sacrifícios. Aparenta bem mais que os sessenta anos. Idade que lhe dá direito a uma série de prioridades, tanto em filas como em outras atividades. Mas sua velhice é sobrevivência, não escolha. Suas perspectivas? Necessita políticas públicas robustas de cuidado, apoio comunitário e atenção médica constante.

Fátima: Envelheceu com autonomia. Planeja outra pós-graduação tardia e talvez enfim editar seu livro. Está namorando um conhecido, viúvo e moram em casas separadas. Suas perspectivas: longevidade produtiva, busca de propósito e reconfiguração da identidade.

Antonieta: Está envelhecendo em ritmo lento. É vista como “exemplo de como envelhecer bem”, mas ignora o peso das condições de origem. Está no terceiro casamento, ambos tem casas em vários locais e filhos de casamentos anteriores. Suas perspectivas: envelhecimento como manutenção de status e juventude, com acesso a tudo que o dinheiro compra.

Mas é preciso ter manha, é preciso ter graça
É preciso ter sonho sempre
Quem traz na pele essa marca possui
A estranha mania de ter fé na vida

Reflexão Final

Imagem gerada no Chat GPT

Três Marias. Três sessentonas no mesmo calendário, mas com corpos, desejos, recursos e expectativas completamente diferentes. O tempo não é justo. A idade não é neutra. Envelhecer no Brasil é também uma questão de classe, cor, território e história.

É fácil tecer teorias e falar em envelhescência com propósito. O mercado se atenta para um potencial ganho com uma camada que tem uma expectativa de vida maior e com um ganho financeiro estável. Mesmo os aposentados de renda baixa, são muitas vezes arrimo de família, responsáveis pelo sustento de regiões onde o trabalho com segurança se torna cada vez mais precário.

Mas há algo que une as Marias. E as mulheres de maneira geral.

Há algo que o tempo, a classe social e os diplomas não apagam: o lugar do cuidado. Cada Maria, à sua maneira, cuidou. Cuidou de filhos, de pais doentes, de netos inesperados. Cuidou da comida no fogão, dos boletos pagos, dos corpos feridos e das emoções esgarçadas. Cuidou até mesmo quando não era justo.

Maria de Milagres cuidou com as próprias mãos calejadas. Sem folga, sem terapia, sem spa. Sua vida foi cuidar: dos filhos pequenos, dos netos adolescentes, dos vizinhos quando a ambulância não chegava. E agora, aos 60, ainda cuida, mesmo com dor nas costas, mesmo com a aposentadoria que mal paga os remédios.

Maria de Fátima cuidou entre turnos e decisões. Fez lancheira, levou no balé, mediou brigas. Cuidou dos pais, do ex-marido deprimido, das amigas em crise. Hoje, tenta cuidar de si. Mas mesmo na academia, responde mensagens de quem precisa de ajuda.

Maria Antonieta nunca precisou cuidar diretamente. Mas sempre havia outra mulher a quem delegar o cuidado: a babá que embalava o bebê, a enfermeira que trocava a sonda da mãe, a cozinheira que preparava sopas pós-cirurgia. Ela também cuidou, coordenando, bancando, decidindo, mas sem tocar o peso.

Em cada uma delas, o cuidado como destino ou escolha: um lugar herdado de gerações de mulheres que disseram "deixa que eu faço". Às vezes por amor. Às vezes por falta de opção. Às vezes porque nem sabiam que poderiam dizer "não".

Aos 60, essas Marias nos perguntam: Quem cuida de quem cuida? E o que seria do mundo, se as mulheres um dia deixassem de cuidar?



1Maria Maria -Canção de Milton Nascimento ‧ 1978

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