Minha mãe recitava Camões
Sete anos de pastor Jacob servia
Labão, pai de Raquel, serrana bela;
mas não servia ao pai, servia a ela,
e a ela só por prémio pretendia.
Os dias, na esperança de um só dia,
passava, contentando se com vê la;
porém o pai, usando de cautela,
em lugar de Raquel lhe dava Lia.
Vendo o triste pastor que com enganos
lhe fora assim negada a sua pastora,
como se a não tivera merecida;
começa de servir outros sete anos,
dizendo:- Mais servira, se não fora
para tão longo amor tão curta a vida.
Minha mãe tinha esse hábito. Para tudo um poema, um dito, uma canção. Fazia seus trabalhos diários como quem navega, majestosa, nas nuvens de um reino mágico. Herança de seu pai, nos dizia. O Doutor alemão era um sonhador. Perseguiu seu sonho de ser médico só para ajudar a quem precisasse. Encontrou seu paraíso em umas terra ermas, perdidas no interior. Para lá levou sua jovem esposa e seus oito filhos. Lá Fora como se imortalizou para a família, era um lugar encantado de fartura, longas noites estreladas e muita liberdade. Talvez fosse esse o lar que minha mãe levasse consigo, qual princesa exilada nas cidades por onde andou. Para tudo tinha uma piada, um olhar brilhante e um jeito brincalhão de fazer a vida parecer maravilhosa.
Me pego fazendo o mesmo. Quando a cuido, nessa troca de papéis que a vida nos traz, recito para ela os mesmos poemas e canções que ela cantava para mim. Hoje eu sou sua mãe, mas nunca esqueço de a lembrar que ainda sou a mesma menininha que ela segurou pela primeira vez em seus braços em um dia distante de abril.
Mas não era assim que ela cantava. Era "Hoje é domingo, teu pai é gringo, fuma cachimbo na porta da igreja." E sorria faceira com a surpresa da falta da rima. Era uma transgressora de certas coisas, embora conservadora em outras. Uma mistura de virginiana com aquariana, se bem me entendem os que fuçam nos astros para entender os signos.
E lá vinha outra ladainha com um montão de palavras em P para alegria da gurizada que ficava encantada com aquela mãe tão linda e espirituosa.
Quando ela queria me elogiar, recitava faceira os primeiros versos da história da Balada na China
Dilliki Dolliki Dinah,
Linda princesa menina,
Formosa como as manhãs,
Do mês de maio na China,
Era uma história em versos de uma princesa que é raptada por um malvado feiticeiro, uma versão chinesa de a Bela e a Fera. Eu adorava ouvir essa história, ainda lembro das imagens do livro que eram belíssimas! Mas a primeira estrofe tem até hoje sabor de colinho de mãe.
Minha mãe recitava Camões. Cantava versinhos populares e fazia palavras cruzadas. Fazia bolinhos de chuva e tricotava como ninguém. Estourava sacos de pão e morria de rir do nosso susto. Falava palavrão, bebia cerveja e vinho do porto. E era extremamente elegante. Já levantava de batom e caminhava como uma modelo em passarela. Era clássica. Tinha as pernas mais lindas do bairro, como definido por um admirador. Voava nas nuvens e escrevia poemas para a Lua. Tinha medos ancestrais e coragens impressionantes. Gostaria que, em algum lugar de sua mente, ela voltasse a sorrir com aquela magia. Ela que se vai para seu mundo de quimeras, que volta a ser a criança sem lar que teve que reconstruir sua vida tão cedo...
Minha mãe recitava Camões ao nos dar banhos, fazendo bolinhas de sabão dançantes. Lia Neruda e bordava na madrugada. Carregava latas de água para abastecer sua casa sem água encanada e usava sapatos Ruy Chaves. Minha mãe era múltipla como todas as mães o são. Mistura de entrega e anseios de mulher.
"Mais servira, se não fora
para tão longo amor tão curta a vida."
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