Helena, a caçula polaquinha


A viagem desde as Três Vendas tinha sido cansativa, especialmente para Doralice, que já estimava que o novo bebê deveria chegar em breve. Era sua sétima gestação. Tinha 28 anos e uma longa história para contar. Sua irmã, Palmira, a recebeu em sua casa. A ela e a toda a sua vasta família.

José Costa, casado com Palmira Silva, era gerente do banco da província em Cruz Alta, no Rio Grande do Sul. A cidade não era exatamente no caminho de Porto Alegre, mas seria um alívio ter o auxílio da irmã para o parto. E poder se acomodar no luxuoso casarão, sede do banco. Era uma construção nova, projeto de um renomado arquiteto alemão chamado Theo Wiederspahn


Na madrugada de quarta feira, dia 16 de setembro, precisamente às 3:30 da manhã nasce uma menina saudável que recebe o nome de Helena Selma. O primeiro em homenagem à irmã do Doutor Stein, seu pai. O segundo nome até hoje não se sabe a origem. E também não importa porque só era usado quando a pequena Polaquinha, apelido carinhoso dado por seu pai, revelava seu temperamento teimoso de virginiana.

Felizes, seu pai Bartholomeu Stein e sua irmã mais velha, Lieta, saem à praça em frente ao banco e plantam uma árvore em homenagem à pequena.

Passado o período protocolar de parto e resguardo, a família segue viagem para Porto Alegre. Segundo sua irmã Flávia, "em deliciosa viagem de trem, em carro leito". Vão morar em Teresópolis, bairro de Porto Alegre, na chácara da Tia Julieta

O batizado. Toda de branco, "uma roupa linda com rendas e babados e sapatos de pelica" como conta outra de suas irmãs, a Maria. Era 5 de setembro de 1926. Uma festa! 

Nesse mesmo ano as filhas do Dr Stein tiveram sarampo, na época uma doença muito grave. Tila e Helena passaram muito mal, ficaram 9 dias sem fala. O Dr Stein chamou para tratá-las um colega, o Dr. Carlos Hofmeister. Tiveram que usar balão de oxigênio, mas conseguiram salva-las. Segundo sua irmã Flávia " o Pai comprou uma cabrita para elas tomarem leite, gordo e forte. Chamou-se a cabrita de Alfazema e nos acompanhou até o Capivari. Tila e Helena, com o leite forte, nutritivo e saudável ficaram fortes, sadias e molecas..." Muitos anos depois, já casada, com filhos, Helena fez questão de ir na inauguração do Hospital Santo Antônio, em Porto Alegre, e se aproximar do já velhinho doutor Hofmeister para lhe agradecer pessoalmente por ter salvo a sua vida. Lembro bem da emoção daquele senhor de cabelos brancos ao ver ali a cristalização da missão de sua profissão. E ali Helena ensinou para sua filha, ainda uma criança, o exemplo e o valor da gratidão expressa.  

Das coisas que Helena recorda já se passam lá nas grotas, como ela chamava o local onde foram morar. No interior do Rio Grande do Sul, um lugar sem recursos, com carência dos serviços do médico, seu pai, que era quase um sacerdote na sua vontade curar. 

A vida é um paraíso! Como ela mesma conta em suas lembranças, "nossa casa era alegre e cheia de gente. Às vezes meu pai trazia seus pacientes e transformava nossos quartos e salas em um pequeno hospital. Como era cheia de mistérios aquela sala de operações. Quando os pacientes iam embora, vinham outros...Melhor, mais acolhedora era nossa cozinha. Pequena quentinha. Nas longas noites de inverno nosso pai lia para nós livros que guardo no fundo do coração. O que mais me emocionou foi um, de aventuras no Amazonas - “Ao longo do Amazonas”. A personagem feminina tinha o meu nome. Cada dia papai lia trechos emocionantes. Eu os vivi, um por um...Tinha coisas gostosas para se comer. A gente via sair, quentinhos, aqueles gostosos bolinhos com canela. Outra coisa que me fascinava eram os sacos de açúcar, empilhados na metade do quarto. Não era despensa não. Era quarto mesmo. E laranjas. Tantas que iam até o teto. Papai fazia, em grandes tonéis, um vinho especial de laranjas. Todos os anos enchia aqueles tonéis de vinho. Mamãe fazia tachadas de doces e geléias. O que eu mais gostava, não eram das gostosas geléias, mas do laranjal empilhado no fundo do quarto.."

Um dia o paraíso começou a fechar as portas. O bom doutor Stein morreu. Helena tinha oito anos. Lembra que ele chamou todos os filhos e conversou com cada um, separadamente. Para ela pediu que nunca desse seu nome a um filho e nunca casasse com um rapaz que não fosse católico. Três anos depois, parte sua mãe, Doralice. A família foi separada, cada um para um canto, vivendo como dava.

Helena era uma pequena adolescente que passou por um tio muito severo, não teve dúvidas, fugiu para a casa da tia mais querida, ali perto. Acabou em um colégio interno, onde também não teve dias felizes. Ela conta que "As freiras eram más. Judiavam da gente. Humilhavam e tratavam como empregadas. Tínhamos que varrer as salas de aula, lavar roupa, lavar o chão e se não estava ao gosto, xingavam e botavam de castigo. O castigo era na sala de aula. Eu ficava de costas para as colegas e a professora dizia: “Helena é uma vadia, relaxada, porca e burra. Vocês têm que ser caprichosas. É feio uma menina relaxada “. Eu pensava: Será que essa freira não morre nunca? Que vontade de xingar: Freira feia, burra, velha “mas eu pensava: se digo tudo isso, ela me bota pra rua, aí onde vou ficar? Não tenho dinheiro, nem ninguém por mim.”Aí chorava..."

Mas novos tempos começaram a surgir. Helena vai com sua irmã Flávia, para cuidar do pequeno Paulo Clóvis. Cachoeira do Sul. Uma janela, um rapaz que passa. Outro Paulo. O seu Paulo. Helena, do sorriso maroto, a adolescente que se recusa a deixar de sonhar, conhece seu futuro marido.  Ela com 14, ele com 18 anos. Mas não seria assim tão fácil.
 

Cinco anos ainda passariam e quilômetros os separariam. Helena foi morar longe. Primeiro Passo do Sobrado, depois Porto Alegre e por fim na capital federal, Rio de Janeiro. Em tempos de trens e cartas, o namoro se consolidou por letras, poesias e mensagens criptografadas para que passassem pela censura das irmãs e tia. Um susto! Seu Paulo fora convocado para ir lutar com os aliados na Europa. Eram tempos de Grande Guerra na Europa. Ela, como filha de alemão, tinha que esconder o sobrenome Stein para que as cartas não fossem abertas também pelos censores. Por sorte, seu namorado era arrimo de família pois sustentava a mãe viúva. Sendo assim, conseguiram a sua dispensa para desagrado dele que, danado, queria se aventurar pelo velho mundo! 

Helena volta. Entre cinemas e voos pelos céus de Cachoeira do Sul, eles retomam os planos de casamento, concretizado em 1944. Para sorte dos dois, Paulo, que tinha sido batizado em uma igreja evangélica pelo pai, o foi depois na católica pela mãe. Ela não precisou quebrar a promessa feita ao seu pai no leito de morte. Talvez ali refletisse o quanto as intolerâncias religiosas podem afastar pessoas que se amam. 

Para a lua de mel viajaram de trem e balsa até Porto Alegre e se hospedaram em um famoso hotel que tinha ficado pronto dez anos antes. O Majestic, projeto do mesmo Theo Wiederspahn, que projetara a casa onde Helena nascera. Até mesmo Getúlio Vargas se hospedava no elegante hotel que viria a se tornar a futura Casa de Cultura Mario Quintana.

Fogos cruzaram os céus de Cachoeira em 1945. O povo saiu a cantar e a gritar nas ruas, parecia um bombardeio. Mas de alegria. Terminava a guerra na Europa. A cidade festejou com desfiles militares onde os jovens primos de Helena, filhos de sua tia Julieta, desfilaram com garbo em seus belos capacetes de aço. 

Helena e Paulo comemoram com muito amor. A vida já lhes sorria. Agora para o mundo também. Haveria novas esperanças. O fruto dessa comemoração nasceria nove meses. Ana Lúcia se chamou a pequena. 

Quando Helena sentiu as dores do parto, sua sogra correu para chamar a parteira. Embora nascessem nos hospitais, as crianças eram ainda conduzidas pelas experientes mulheres, ficando os médicos para alguma complicação. Naquela época, Helena, como filha de médico, não pagava consultas. Até porque muitos dos profissionais tinham sido colegas ou alunos de seu pai. A parteira examinou a jovem mulher e menosprezou as dores. Talvez Helena não fosse escandalosa, mas foi certeira no tabefe que deu na mulher quando essa lhe disse em um português alemoado que não eram com "essas dorzinhas que o nenê nasceria". Mas no meio do caminho para casa, a velha tomou juízo e voltou com a certeza da vontade da jovem esposa de dar este presente ao marido. A menina nasceu faltando 15 para a meia a noite. No dia do aniversário de seu pai.

Três anos mais tarde, nasceu o Fábio. O nome, homenagem ao sogro, morto em combate quando ela nem havia nascido, já estava escolhido desde sempre. Desta vez o jovem Paulo estava presente porque tinham voltado a morar em Cachoeira. Quando a "boa hora" estava chegando, o rapaz mais que ligeiro foi deixando o quarto do hospital, achando que sua mãe iria acompanhar o parto, que afinal, era coisa de mulher. A mãe, muito sábia, o pegou pelo ombro e disse: Não, meu filho. Na primeira eu fiquei, tu estavas trabalhando em outra cidade. Agora tu vais ficar e acompanhar tua mulher para entender o que é um parto. Assim nasceu meu irmão. Em um domingo, dia das mães. 

Depois dessa lição de parto, essa que vos escreve, demorou oitos anos para nascer. Com música, iluminação suave e também meu pai no quarto. Tinha sido um escândalo na conservadora cidade gaúcha que a esposa do gerente do BB estivesse grávida aos 32 anos, uma idade tão avançada naquele ano de 1957 em que os homens começavam a ganhar os céus.  

Helena, a polaquinha do Doutor Stein, a Leninha do Paulo eterno apaixonado, a mãe carinhosa e brincalhona, a Tia Helena sempre elegante e acolhedora com sobrinhos e sobrinhas, a Dona Helena que ajudou tantos pela vida afora, a leitora de Krishnamurti e Neruda, a dona das pernas mais bonitas da Independência, a mulher que teve síndrome de pânico antes de isso ser conhecido, que saiu sem medicação, fazendo do tricô uma profissão com maestria e da ioga uma ferramenta de saúde, assim descreveu seus acordes de vida:

"Meu livro será a história de minha vida. Vou buscar as letras nos jardins, as frases colherei dos colibris, a poesia será refinada como uma orquídea recém aberta. 

As histórias serão lindas, românticas, zombeteiras, alegres, malandras. Buscarei no passado qualquer coisa como a sabedoria de meu pai para enriquece-la. A nostalgia de minha mãe, uma nota enigmática. 

Nas pedras do caminho que andei, nos meus passos apressados uma nota menos pesada tornou as pedras mais suaves. 

Buscarei no presente, a imagem calma de um lar, onde há muito colorido escondido, no meio de tanta busca, tanto anseio de Vida!

Quem somos nós para obedecer calados, sorrir por cortesia, chorar de tristeza, chorar de verdade, chorar de medo...

Vem uma enorme vontade de sair por aí cantando "minha Vida é um palco iluminado cheia de gostosas recordações" sentindo o vento, tão violento, nos sacode, nos volta à vida, tão forte pensamos no Minuano nos Pampas, nas coxilhas, em qualquer lugar. 

Estar por estar, sem hora para chegar ou sair, andar descalça, andar, andar sem olhar, água escorrendo pela sarjeta num redemoinho de papel velho, como ideias amarrotadas. Chegando atrasada para o jantar, jogando o casaco na poltrona, sentando no chão, ouvindo músicas de Caymi num radinho de pilha. Folheando livros de histórias loucas, relendo poesias de Neruda, vivendo a magia de um poeta rico de encantamento, solto para a vida, transmitindo uma vivência de perfume, saudade e malvas.

Simplesmente ser.

Simplesmente estar aqui, no aconchego de um lar, esperando mais uma página do meu querer virada ao vento frio e gostoso do meu Rio Grande."
 Helena 27/5/88


  

Comentários

  1. Que delicioso e amoroso relato, Elenara, do trilhar da grande e doce guerreira Heleninha. Lembro de tantas vezes ficarmos conversando, na época em eu e vc fazíamos Arquitetura. Amei esse reEncontro!! .
    Helena siga impulsionada com todo esse amor que sempre te moveu, para novos desafios! Esteja feliz e orgulhosa do que és! Beijos com carinho, amigas Elenara e Helena.

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    1. Que carinho lindo, Cristina!!! Obrigada sempre pela presença amiga e amorosa! beijos meus e dela

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  2. Gostei muito!Talento e escritora e de arquiteta.

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