Enchente: Uma coletânea em prosa e verso — Uma reflexão poética sobre dor, esperança e resiliência

Resenha de livro

Quando as águas invadem, arrastam mais do que casas e bens materiais. Elas levam memórias, sonhos e, em muitos casos, a segurança emocional das pessoas. Mas, paradoxalmente, também deixam marcas de solidariedade, resiliência e uma vontade inabalável de reconstruir. É exatamente essa dualidade — o dilúvio físico e emocional — que "Enchente: Uma coletânea em prosa e verso", da Editora Bestiário, captura de forma magistral.

Com uma linguagem ora poética, ora visceral, esta obra é mais do que uma homenagem à tragédia das enchentes que devastaram o Rio Grande do Sul em 2024. Ela é uma carta aberta às dores da humanidade e um grito de alerta contra o descaso que permitiu que essas águas se tornassem tão avassaladoras.

Em cada conto, crônica e poema, os autores dão vida a um mosaico de sentimentos e reflexões. Alguns textos mergulham na devastação: as águas invadindo espaços íntimos, transformando o cotidiano em ruínas. Outros exploram as histórias de resistência, as mãos que se estendem em solidariedade e a capacidade do ser humano de encontrar força mesmo em meio à destruição.

A perda e a dor emergem como temas recorrentes, como na crônica "Rio Grande do Sul, maio de 2024", de Oscar Henrique Marques Cardoso, que narra a luta de um jovem para resgatar não apenas objetos, mas também pedaços de sua identidade. Já no conto "Cadê o peixe que estava no rio? Está na calçada!", de Alessandro Castro, por sua vez, transforma o deslocamento literal do peixe em uma metáfora pungente para o desajuste causado pela urbanização irresponsável.

A coletânea também atua como uma lente crítica sobre as raízes da tragédia. O descaso ambiental, a negligência na infraestrutura e o impacto das mudanças climáticas não são apenas pano de fundo, mas protagonistas. Adeli Sell, por exemplo, em suas críticas afiadas, revela como a falta de investimento em medidas preventivas transformou um problema evitável em uma catástrofe anunciada.

Entretanto, a obra não se limita a apontar culpados. Ela oferece um olhar esperançoso, ainda que melancólico, sobre a capacidade humana de resistir e se reinventar. A minha crônica "O vaso chinês e as águas que subiam" é uma alegoria tocante dessa reconstrução, simbolizando que, mesmo nos escombros, a beleza pode ser resgatada.

Um dos pontos mais emocionantes da coletânea é a exaltação da solidariedade. As histórias de resgates improvisados, vizinhos compartilhando o pouco que restou e pessoas desconhecidas unidas pela dor se repetem como um lembrete de que, em tempos de crise, o espírito coletivo se fortalece. No poema "Cala-mi(ci)dade", de Inês Lempek, a cidade encharcada ganha voz, revelando não apenas o impacto da água, mas também a força transformadora da compaixão que brota entre os escombros.

Mais do que um registro literário, "Enchente" é um manifesto. Ao explorar as tragédias humanas e ambientais, o livro convida o leitor a uma introspecção profunda sobre a relação entre sociedade e natureza. As metáforas e imagens construídas nas narrativas ecoam como alertas: até quando o descaso será tolerado? Até que ponto ignoraremos os sinais de uma Terra que clama por atenção?

Os textos clamam não apenas por ação, mas por um compromisso real com a prevenção, seja através de políticas públicas, seja por mudanças individuais. Em suas páginas, encontramos não apenas um lamento, mas também uma proposta: transformar dor em aprendizado e tragédia em oportunidade para um futuro mais consciente.

Para quem busca literatura que transcenda o entretenimento e sirva como espelho da realidade, "Enchente" é uma leitura imperdível. Ela mostra que, mesmo diante da força implacável da natureza, a humanidade possui uma força maior: a capacidade de narrar, refletir e, eventualmente, mudar. Em tempos em que as águas parecem ameaçar não apenas os alicerces das casas, mas também os da nossa relação com o planeta, este livro é um convite à reflexão. Mais do que uma coletânea, é um testemunho da resiliência humana e um chamado à ação — antes que seja tarde demais.

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