Quando os relógios param
Na estante da casa da minha tia tinha um relógio tão diferente dos normais. Era em vidro, revelando um mecanismo fascinante que mesclava com o barulho dos minutos passando. A casa da minha tia era um mundo a parte. Tinha uma geladeira sempre repleta de guloseimas. Quando falo repleta, é cheia de andares com vários recipientes uns sobre os outros. Tinha um sótão onde dormiam os filhos. Meninos de um lado, meninas do outro. Naquele sótão morava uma casa de bonecas apaixonante. Acho que vem dali a inspiração para tantos dos meus sonhos terem sempre um sótão de tesouros escondidos. Mas era na estante da sala, onde morava o relógio que me fascinava, que ficavam os enfeites que eu nunca tinha visto! Meu tio, seu marido, era navegante. Radio telegrafista do antigo Loide Brasileiro, passava temporadas em terras distantes e quando vinha, além de um novo filho, lhe deixava objetos de mundos então tão desconhecidos. O relógio era um deles.
Relógios sempre exerceram em mim uma magia incontrolável. É como se o tempo que medem pudesse adquirir dimensões novas e poderosas. É como se eu fosse senhora do tempo. Gosto da imagem da ampulheta e da areia caindo, inexorável, nessa dimensão que traz história e memória. Nós mesmos parte dela, que um dia findaremos e seremos lembranças na alma de alguém, até que, findos estes também, viremos grãos no infinito dos cosmos.
Recordo também da história do relógio de bolso de meu avô. Herança quase única que meu pai guardava com carinho. Até que meu irmão, que sempre foi desapegado, o enterrou como tesouro perdido. Fez um mapa que se perdeu. Um dia talvez, em escavações futuras, alguém o desenterre e fique imaginando que histórias guardaria esse relógio perdido no tempo.
Lembrei deles porque meus relógios resolveram parar em modo coletivo. Meu lado pragmático, o mais serio, diz que as pilhas pifaram. Meu lado místico acha que são sinais do universo. Eu tenho esses dois lados que brigam em mim. Um lado olha a Lua e vê magias. Outro respira fundo, procura respostas lógicas e vai em frente.
É normal. Acredito que todos tenham essa dicotomia dentro de si. Mistura de criança assustada com adulto assanhado. Não devia ter deixado para escrever em plena prova de ginástica artística. Os corpos voam em aparelhos. A gente vê magia e quase poesia. Os atletas vem de rotinas estafantes, cheios de foco e persistência. A excelência nasce dessa mistura de talento com suor.
Muito suor. Muita hora perdida treinando. Treinando mais. Treinando muito.
As palavras também exigem foco, suor e treino. Mesmo nos dias em que a vontade é só ler. Mesmo nos momentos de sono. De cansaço. E de falta de inspiração.
Manter um diário de escrita e emoção é passear em ritmo de ensaio geral. Mistura de dança ritmada, alucinante e paradas estratégicas para retomar o ritmo de novo. E repetir tudo no dia seguinte. E no outro. E mais outro.
Quem fica assim como eu, olhando uma prova, vendo acertos e erros, mal percebe a trajetória de choros e dores para simplesmente concorrer.
A vida passa. As horas, minutos. Às vezes os relógios param. Talvez nos alertando que a própria vida exige paradas estratégicas para que o ritmo da jornada seja melhor estudado. E possamos nos treinar para sermos melhores. Ou um pouco mais perto da excelência.
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