Reversos sentimentos
INTEMPÉRIES
Os pingos robustos e insistentes descem o beco ermo, descendo, outrossim, o ermo mundo dos meus sonhos, sob o sereno do presente momento.
Exteriormente, com seu vigor poderoso, os borrifos persistem em ruir, com veloz furor, os frondosos troncos dos velhos ipês, bem como os brotos desprovidos dos
pequenos lírios e de flores multicores, insones como eu, no breve momento em que o sol surge e se despede, vencido pelos trovões, coriscos e nuvens potentes.
Em meus sonhos, os chuviscos renitentes, de outro modo, coíbem o pouco deleite que me restou, o exíguo bem-querer que ousei sentir.
No beco, decerto o sol vem. Hoje mesmo, ele surge imprescindível e forte. No horto, tênues flores e verdes brotos reincidentes, num eterno regresso. E por muitos
invernos ou verões, veremos os chuviscos, os quase-fim de tudo, porém, de novo o sol vencendo.
Oh! Contudo, no meu íntimo, no meu próprio precipício, sinto que tudo corrói.
Nem os teu olhos, doce menino, de um preto profundo e de um silente conforto, me devolvem o sossego que o meu espírito tanto exige. Logo, me vejo num infindo crepúsculo cinzento. Sei que , mesmo insistindo, sequer fogem do sono que os oprimem o deleite cômodo e efêmero; o sonhozinho benéfico, quente e ligeiro que em tempos remotos conheci. E é por isso que eu sofro.
No beco, vejo o chuvisqueiro descer num fluxo robusto. Com efeito, o borbulho e seu ruído chuvoso crescem e eu me interrogo:
- Por que chove sem motivo?
Depois, concluo com um certo desgosto nos olhos, nos ombros e no espírito, como que insistindo no próprio consolo:
- Chove, contudo nem é porque o inverno chegou; nem porque o sol esfriou. É sim,
porque chorei muito ontem, em todos os segundos e minutos noturnos.
Meus sonhos — nem eles são
como, habitados.
Neles há mais solidão do que e alarido.
aparece
por momentos alguém há muitas vezes.
Mova a maçaneta uma mão
solitária.
Expande-se em anexos de ecos a casa vazia.
Corro da
soleira até o vale
silencioso, como de ninguém, já anacrônico.
De onde
vem em mim ainda este espaço —
não sei.
Wislawa Szymborska (Agradecimento)
Os desafios de revelar sentimentos e impressões do mundo
De onde essa pulsão pelo escrever que acomete aos escritores?
No livro que acabamos de ler percebemos um mundo de sensações e cadências plenas de riqueza de locais que muitos de nós nem imaginam existir. Essa a beleza do descobrir o mundo pelos olhos de outra pessoa.
Os contos de Romanilta Rocha nasceram de desafios literários. Em todos, uma isca, um mote que faz nascer o prazer de descrever mundos, reescrever histórias, ou ainda contá-las sem usar de uma vogal fundamental! Outros provocados pela escrita a inúmeras mãos e mentes, cabendo a cada escritor a tarefa de não apenas levar adiante uma história complexa, mas torná-la crível e arrematar com maestria para que o leitor não apenas se surpreenda, mas se pergunte como lidaria com tal estímulo.
Em Reversos Sentimentos fomos convidados a entrar no mundo cheio de cadência descritiva de uma região nordestina, rica de tradições (e alguns fantasmas), onde pudemos sentir com vivacidade de expressões o linguajar e a cultura dos lugares onde os personagens nos trazem promessas de eternidades, vivências cotidianas, outras nem tanto, e algumas promessas de amor. Algumas que se complementam, como se, apesar de outros nomes, fossem vividas pelas mesmas pessoas, contadas de pontos de vista diferentes.
Inspirações em contos famosos nos trouxeram uma mescla de continentes. Uma foto em uma rede social foi o nascedouro de um conto que me tocou profundamente, não apenas pela homenagem, mas pela maneira linda e sensível como a autora uniu mundos diversos, falando dos sonhos, da exclusão social e de como os caminhos se bifurcam para no fim, voltarem ao ponto de início, já mudados, mas ainda unidos.
Percorrer os caminhos de um livro é como adentrar em uma casa pelo convite de sua dona. Nosso primeiro olhar revela curiosidade, aos poucos vamos unindo percepções de espaços e cada detalhe mais nos revela da alma de quem ali mora. Nas páginas que lemos caminhamos no mundo de alguém que sente a vida com paixão e sensibilidade, que ama a terra que a recebeu na vida, que sabe captar e recontar como se estivéssemos juntos, vivendo cada momento descrito no seu livro. Primeiro de muitos imagino. Espero.
Revivo aqui as palavras de Romanilta Rocha que responde a minha indagação inicial: de onde essa pulsão pelo escrever que acomete aos escritores?
“...Logo, a afinidade pela leitura fez nascer em mim a paixão pelo escrever, acho que, talvez pela inabilidade em demonstrar o que sentia através fala, acreditei, assim, que podia tecer mediante o meu pobre dicionário as minhas impressões sobre o mundo que me cerca, ainda que de maneira modesta.”
De onde vem este espaço, indaga a poeta polonesa. Não sabemos. Por isso mesmo, nos desafiamos a tecer nossas impressões para deixar, quem sabe, nossa marca, de reversos sentimentos.
Fotos Elenara Stein Leitão e Cidadesnanet
Que meus Reversos Sentimentos conduzam ao caminho da liberdade que a leitura proporciona!
ResponderExcluirOxalá! O caminho da leitura é sempre libertador! Abraços e sucesso
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