Mulheres sem nome - uma leitura interessante


Fazia tempo que eu não pegava um livro grosso (495 páginas) e devorava em dois dias. Nas eras pré redes sociais era um hábito comum. Lembro de minha mãe me chamando com um "pára de ler, guria chata e vem conversar!". Éramos todos leitores vorazes, até ela, em uma casa onde este costume tão salutar sempre foi incentivado. O livro que me fez sentir essa volta aos velhos tempos é "Mulheres sem nome" de Martha Hall Kelly.

Uma história verídica, de experiências "médicas" em um campo de concentração para mulheres na Alemanha dos horrores nazistas e dos esforços de uma mulher para descobrir e ajudar as chamadas cobaias (lapins ou coelhas pela forma saltitante como andavam depois das cirurgias a que eram submetidas), levou a autora a mergulhar na história que foi contada pelo olhar de três mulheres, duas delas reais e outra um somatório das cativas.

Caroline, a americana rica, atriz e com uma profunda consciência social nos mostra um lado mais ameno, mas ao mesmo tempo denuncia como é fácil esquecer ou fazer de conta que não se vê atrocidades quando elas não estão sob nossos olhos.

Herta, a alemã, nos alerta como pessoas aparentemente comuns, que em outras circunstâncias poderiam ser profissionais de sucesso porque cheias de determinação e ambição, podem se tornar não apenas coniventes, mas também cúmplices de atrocidades. A desculpa do estar visando o bem do que considera prioritário e estar obedecendo ordens, já causou mais mal ao mundo que podem imaginar os incautos que fingem não ver a falta de humanismo que grassa ao seu redor.

Kasia, a adolescente polonesa, cheia de sonhos e idealismos, católica, patriota e apaixonada como todas nós fomos (e ainda somos algumas dentro de nossas almas). Presa por ajudar e punida por nascer em um local onde a loucura imperou por vontade de não apenas um líder, mas pelas vontades de uma multidão que aplaudiu e deu vazão para que um mito matasse e liquidasse sonhos, vidas e países em nome de uma eugenia e loucuras de poder.

Regimes totalitários não nascem de uma hora para outra, são consequência de egoísmos e falta de humanidade conjuntos, de intolerâncias as mais diversas que vê o outro como inimigo e não como seres humanos diferentes. Ver e contar a história da segunda guerra pelo olhar das mulheres que nela viveram e que sempre pagaram o preço de terem suas vidas marcadas por este período, é um dos grandes trunfos do livro.

Spoiler  



Diria que a primeira parte do livro é brilhante. Segue os rumos das três mulheres, contando suas histórias diferentes, mas que se encaixam em um imenso jogo de peças que vão sendo lançadas à vida.

Entrelaçar a vida social de Caroline, mulher independente e vivendo em um mundo de aparentes liberdades, nos dá um respiro de folego entre as histórias mais sofridas de Herta e Kasia, mostrando que algoz e oprimido talvez sejam pontas de uma mesma história que se repete nas ironias da vida.

Ler sobre as experiências feitas em Ravensbrück doí em nossa humanidade. Impossível para quem tenha um pouco de generosidade em seu coração, olhar com uma visão omissa às barbaridades cometidas.

E é aí que a segunda parte do livro não me agradou tanto. Ela foca mais nas figuras de Caroline e Kasia, como se deu o encontro com as sobreviventes do campo, questionando se é possível não apenas superar, mas perdoar. Ou se não, pelo menos não viver no passado.

A figura da médica alemã é deixada em segundo plano, só aparecendo no final quando, já liberta após cumprir cinco dos vinte anos de pena, volta a clinicar com sucesso em uma cidade alemã.

Seria vingança o querer que alguém pague pelos seus crimes? Seria mais humano que o seja, mostrar a outra face e seguir adiante? As escolhas individuais podem refletir às da sociedade? 

É salutar esquecer atrocidades mesmo correndo o risco que venham a ser cometidas novamente por quem não elaborou os seus riscos?

Há caminhos fáceis ou caminhos de reflexão que nos levam ao crescimento?

Há várias respostas, inclusive no livro. A arte é uma delas.

A reflexão, talvez, a principal.

Que cada uma de nós tire a sua. 


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