O homem que coçava a orelha com um grampo


Entrou no Uber. Pensou consigo mesma que não se faziam mais aplicativos como antes. Não mais os veículos pretos, com gente engravatada e cheia de mesuras. O motorista vestia bermudas. A rádio gritava as fofocas da novela. O carro já tinha visto dias melhores, a limpeza também. Mas a pressa era tamanha e a promoção que a fazia viajar de graça compensava tudo. Até achou graça quando, depois de espirrar pela janela, o motorista pegou um grampo e limpou a orelha...

Cara! Nunca tinha visto nem um taxista daqueles táxis bem horrorosos fazer isso. Limpar a orelha com um grampo! Nem grampo se usava mais. Mas nestes tempos de surrealidade aquilo foi apenas um toque a mais.

Se armou de bom humor porque nada ia empanar dentro dela a capacidade de ser simpática. Falou do tempo, da vida, do futebol. Deixou de lado os assuntos mais espinhentos porque sua natural diplomacia, aliada à sabedoria de décadas de vida, muitas vividas em uma ditadura, lhe ensinaram que nem tudo se fala abertamente.

E nem as coisas de dentro. Muitos anos atrás, um psiquiatra tinha lhe dado a senha com um historinha que fez todo o sentido em um tempo em que andava chorando por tudo, sentidos todos aguçados, sensibilidade a flor da pele.

Imagine que você é uma médica, lhe dissera o cara que era, na época muito execrado pelos seus pares. Detém um conhecimento científico, com anos de pesquisa. E de repente você cai em uma zona deserta, habitada por seres que acreditam na força do trovão e em superstições. O que você faz? Tenta falar de ciência e corre o risco de ser imolada viva? Servir de alimento para algum Deus faminto de ódios? Ou se resguarda e percebe quem é o pajé ou os pajés, aqueles que em toda a sociedade detém a sabedoria. E então com toda a calma do mundo, mantém o sorriso e silêncio diante da tribo e só fala com seus pares...???

Meio elitista visto de agora, anos depois. Mas na época serviu tanto! Consolou seu choro que era mais de solidão de reconhecimento e sensibilidade que de dores reais. Talvez ainda fosse agora.

Ô pensamento que voa, riu sozinha, enquanto descia do uber do homem que coçava a orelha com um grampo, agradecia a gentileza, pegava o celular e tacava cinco estrelas porque, né, o cara está se esforçando, dirigiu com segurança e não está fácil para ninguém. Se não está para os carros pretos com homens engravatados, menos ainda para os carros mais simples com homens que ainda coçam a orelha com grampos!

Correu pela rua que o compromisso urgia. Um casal ao longe lhe chamou a atenção. Eram jovens, quase adolescentes. Trocavam um beijo apaixonado em plena rua. Lembrou dela mesmo, mais jovem e mais apaixonada. O jovem que acenava na janela do ônibus tão jovem como ela, não tão apaixonado como ela, lhe sorriu de volta. Tinham trocado um beijo apaixonado que selava a distância que já estava consolidada entre eles. Não iam voltar a ficar juntos. 

A juventude tem desses mistérios que torna tudo tão mais lindo.

Outros beijos mais ardentes tinha trocado, com mais e menos pressa. Mais madura, mais intensos se tornaram. Sorriu mais uma vez antes de cruzar a porta do imenso prédio que a lembrava que a vida corria depressa. Olhou o relógio, não ia chegar atrasada. Detestava deixar alguém esperando.

Arrumou o vestido vermelho. Olhou de soslaio para o espelho e mordeu os lábios. Pisou com firmeza no imenso salto que a fazia alguns centímetros mais alta. Seu cabelo já não era como tinha nascido. Seu nariz sofrera retoques. Seus seios empinados tinham custado uma fortuna. 

O compromisso que a esperava era de vital importância. Imaginou o que pensariam se soubessem que ela tinha sido trazida por um homem que coçava a orelha com um grampo. 

O grampo. Não entendia muito bem porque aquele detalhe esquisito, surreal até em um aplicativo de transporte que depende da opinião dos clientes, tinha lhe chamado tanto a atenção. Tinha até pensado em citar como uma piada, durante a reunião, mas parou. Aquele gesto tão banal lhe lembrava algo, uma coisa dela perdida na infância. Seu avô, caminhoneiro, fazia aquele gesto. Era dele que lembrava, agora com o carinho da saudade. Seu avô que era quase analfabeto,que tinha aprendido a desenhar o nome em um tal de mobral, mas que dirigia como ninguém. Que contava histórias como se falasse de sua vida. Mostrou um Brasil enorme de grande, diferente do que ela aprendia no colégio. Na sala de aula eram mapas e nomes: qual os afluentes da margem direita do Amazonas?? Na voz do avô, eram Marias e Pedros que ganhavam forma, cada um ligado a uma cidade, a um estado, a uma comida e flor. Era um país de esperanças e tristezas, cada um ganhando a vida e sobrevivendo como dava, uns dançando, outros cantando, outros ainda coçando a orelha com um grampo.

Dentro dela gemeu uma verdade. Ela que já era urbana, vestida em um vestido vermelho, equilibrada em saltos altos e mordendo os lábios para ficarem mais vermelhos, ela que era doutora, que viajara e fazia sua vida do jeito que bem entendia, no que era de sua escolha, não muito é verdade, que neste mundo de Deus, já dizia seu avô, escolhe mesmo quem não precisa de salário para sobreviver. Os outros se contentam com as migalhas da liberdade, mas mesmo essas podiam ser prazerosas que se há ter jogo de cintura, minha menina, dizia o velho guerreiro enquanto coçava a orelha com o grampo.... 

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