Camadas e passos na cidade

 

Imagem tratada com IA

É uma experiência estranha a que sinto nesta manhã de sábado andando pela Rua da Praia em Porto Alegre.

Uma semana esquisita onde passo mal em uma madrugada de terror. Morar só após os 60 e muitos tem lá os seus desafios. Um dia intercalado de recuperação de forças e, enfim, um dia de socializar. Pero no mucho que continuo aquela guria/menina/mulher que concorda com a Bethania quando canta Maricotinha:

Se fizer bom tempo amanhã

Se fizer bom tempo amanhã

Eu vou!

Mas se por exemplo chover

Mas se por exemplo chover

Não vou!...

Uma chuvinha, redinha

Cotinha

Aí, piorou!

Nem tô!

Nem vou!

Nem tô!

Nem vou!

Saio da Casa de Cultura Mario Quintana, onde fui ver o último filme de Costa Gravas – Uma bela vida. Não sou uma cinéfila em potencial, mas gosto do desafio de mergulhar uma hora e pouco na magia de um cinema ainda vazio. O mergulho em uma história, sem barulhos nem pipoca. 

Eu e a tela. Eu e a história. Um filme de vida e morte. Um falar sobre o que mais nos assusta como seres humanos: encarar a finitude. Uma reflexão delicada de como deveria ser vista a vida, em suas belezas e principalmente em sua finitude.

Só quem tem a dimensão da morte sabe que não se pode permanecer na superfície da vida. Li algo parecido aos 20 anos. Nunca esqueci. Entender e enfrentar as passagens, por mais doídas que sejam, nos fazem ter a verdadeira crença na vida que fazemos ser.

Saio do cinema um pouco diferente de quando entrei. Vi uma obra prima? Nem tanto, mas mergulhei em memórias e vires a ser naquelas viagens do refletir.

Enquanto caminho para outro compromisso do dia, o lançamento de uma antologia – Tempos Sombrios- onde participo com um conto, Bailarinas Bambas, sigo os rumos pelo centro de Porto Alegre, aquele que chamamos com pompa de Centro Histórico. E algo em mim se desconecta da realidade.

De repente não sou uma andante apressada, mas uma observadora ausente de mim, que olha de dentro/longe/ várias camadas de tempo. Deve ter sido catalisada pela semana esquista que passei, ou talvez pela horrorosa obra de calçamento que destroçou o que era uma rua que um dia teve charme e memória.

Vejo minha menina pequena, carregada pela mão de meus pais, passeando por uma feira do livro menor, com a emoção de descobertas de leituras. Ao lado dela, uma adolescente desafiante, de minissaia, que levanta a cabeça e reencontra sua cidade já que mora no Planalto Central e está ali de férias. Olho para o lado e vejo a jovem apaixonada saindo do cinema de rua e sentando na praça da alfandega com seu jovem namorado para falar daquele filme da Sonia Braga, a Dama da Lotação. Um tempo sombrio entorna o tempo, uma manifestação estudantil, um corredor polonês e seu amigo/colega é preso ao seu lado. E ela, parada, atônita, fica pensando no que fazer para ajudar. 

Meus passos de hoje me levam adiante e na esquina democrática, hoje tão apática, vejo as aglomerações de tantos movimentos de ontem, comícios e sonhos que moviam esperanças de utopias em tempos de tanta indignação.

Corre, digo para a eu de hoje. A fome, a pressa de achar um banheiro, de chegar no Chalé da Praça XV para o encontro com pessoas que se reúnem pelo desafio de pensar, sentir e escrever sobre os tempos sombrios que vivemos. E vivemos. E nem por isso deixamos de viver. E sentir. E cuidar para que a vida encontre terra e semeadura para continuar existindo.

Enquanto entro, ainda posso me ver, estudante, tirando fotos no lambe lambe, naquele instantâneo que teima em guardar memórias de tantos que somos.

Nós passageiros. A vida, eterna.

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