Camadas e passos na cidade
É uma experiência estranha a que sinto nesta manhã de sábado andando pela Rua da Praia em Porto Alegre.
Uma semana esquisita onde passo mal em uma madrugada de terror. Morar só após os 60 e muitos tem lá os seus desafios. Um dia intercalado de recuperação de forças e, enfim, um dia de socializar. Pero no mucho que continuo aquela guria/menina/mulher que concorda com a Bethania quando canta Maricotinha:
Saio da Casa de Cultura Mario Quintana, onde fui ver o último filme de Costa Gravas – Uma bela vida. Não sou uma cinéfila em potencial, mas gosto do desafio de mergulhar uma hora e pouco na magia de um cinema ainda vazio. O mergulho em uma história, sem barulhos nem pipoca.
Eu e a tela. Eu e a história. Um filme de vida e morte. Um falar sobre o que mais nos assusta como seres humanos: encarar a finitude. Uma reflexão delicada de como deveria ser vista a vida, em suas belezas e principalmente em sua finitude.
Só quem tem a dimensão da morte sabe que não se pode permanecer na superfície da vida. Li algo parecido aos 20 anos. Nunca esqueci. Entender e enfrentar as passagens, por mais doídas que sejam, nos fazem ter a verdadeira crença na vida que fazemos ser.
Saio do cinema um pouco diferente de quando entrei. Vi uma obra prima? Nem tanto, mas mergulhei em memórias e vires a ser naquelas viagens do refletir.
Enquanto caminho para outro compromisso do dia, o lançamento de uma antologia – Tempos Sombrios- onde participo com um conto, Bailarinas Bambas, sigo os rumos pelo centro de Porto Alegre, aquele que chamamos com pompa de Centro Histórico. E algo em mim se desconecta da realidade.
De repente não sou uma andante apressada, mas uma observadora ausente de mim, que olha de dentro/longe/ várias camadas de tempo. Deve ter sido catalisada pela semana esquista que passei, ou talvez pela horrorosa obra de calçamento que destroçou o que era uma rua que um dia teve charme e memória.
Vejo minha menina pequena, carregada pela mão de meus pais, passeando por uma feira do livro menor, com a emoção de descobertas de leituras. Ao lado dela, uma adolescente desafiante, de minissaia, que levanta a cabeça e reencontra sua cidade já que mora no Planalto Central e está ali de férias. Olho para o lado e vejo a jovem apaixonada saindo do cinema de rua e sentando na praça da alfandega com seu jovem namorado para falar daquele filme da Sonia Braga, a Dama da Lotação. Um tempo sombrio entorna o tempo, uma manifestação estudantil, um corredor polonês e seu amigo/colega é preso ao seu lado. E ela, parada, atônita, fica pensando no que fazer para ajudar.
Meus passos de hoje me levam adiante e na esquina democrática, hoje tão apática, vejo as aglomerações de tantos movimentos de ontem, comícios e sonhos que moviam esperanças de utopias em tempos de tanta indignação.
Corre, digo para a eu de hoje. A fome, a pressa de achar um banheiro, de chegar no Chalé da Praça XV para o encontro com pessoas que se reúnem pelo desafio de pensar, sentir e escrever sobre os tempos sombrios que vivemos. E vivemos. E nem por isso deixamos de viver. E sentir. E cuidar para que a vida encontre terra e semeadura para continuar existindo.
Enquanto entro, ainda posso me ver, estudante, tirando fotos no lambe lambe, naquele instantâneo que teima em guardar memórias de tantos que somos.
Nós passageiros. A vida, eterna.
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