Vergonha, memória e aprendizado

Acordo madrugadas em pleno processo de desintoxicação de navegação virtual a esmo e duas coisas me penetram a mente.

Uma, a leitura de um artigo de Helena Terra, Um copo de vergonha, que descreve a vergonha como um sentimento extremamente complexo, capaz de criar silêncios que evitam o reconhecimento de atos indignos e, assim, dificultam qualquer remorso ou reparação. Esse silêncio não é apenas ausência de fala; é uma forma de distorcer a memória, de manter inertes danos que, de outra forma, poderiam ser reparados.

Fico a pensar em minhas próprias vergonhas e nas dos tempos sombrios que ora vivemos, quando narrativas de luta por direitos humanos, proferidas por notórios detratores destes, chegam a causar engulhos pela distorção de atos e fatos sobejamente conhecidos, até porque vivenciados em minha história e na história de nosso país e do mundo.

Sigo a saga da noite com a leitura de Nada será como antes, romance de Andreia Schefer, recém-iniciado dias atrás. É uma leitura que atravessa a madrugada e, de certa forma, parece conversar com o artigo de Helena Terra sobre vergonha, memória e aprendizado. Naquele, a autora aponta, com refinada clareza, que o passado não fica quieto; ele se revela aos poucos, especialmente quando a vergonha atua como estilhaço que pode tanto calar quanto mobilizar. Ao ler o romance de Andreia Schefer, vejo esse paradoxo em ação: a necessidade de curar feridas que não foram realmente curadas depende de confrontar memórias que insistem em não obedecer ao esquecimento. É justamente nessa tensão entre manter segredos e exigir revelações que a leitura se transforma, para mim, em uma ponte entre o que foi e o que precisa ser percebido para que haja algum tipo de reparação. Percebo que a autora não celebra a vergonha como motor de negação, mas a coloca sob a lupa da coragem: enfrentar-se à própria memória é o passo que pode tornar possível a transformação, não a repetição cega do que aconteceu.
Andreia Schefer

Quando Vitória, nome emblemático, retorna às suas raízes, a um passado onde segredos são mascarados por narrativas diversas, camuflando verdades dolorosas com disfarces e mentiras, o que fazer quando estas vêm à tona? Será que é possível passar um pano por cima e seguir adiante? A resposta, no romance e na vida real, nunca é simples. A ideia de que nenhuma ferida foi realmente curada até o momento em que o passado é confrontado sugere que a cura não é um instante, mas um processo que exige a coragem de revisitar memórias dolorosas, lembranças que vergonha e silêncio costumam tentar enterrar.

A leitura fluida do romance, com capítulos curtos que integram passado e presente da protagonista, me faz revisitar meu próprio passado. E também o ontem coletivo, tão cheio de disfarces e verdades enterradas. Nesse sentido, a leitura, para mim, não foi apenas uma busca por enredos: foi uma experiência que abriu espaço para que eu reconduzisse, em minha própria memória, fatos políticos que vivenciei e que, em tempos de convulsão, foram marcados pela vergonha de tantos de nós que não tinham respostas adequadas diante de certos acontecimentos. Até porque ousar reagir, em tempos de repressão, pode significar preços muito altos: o desaparecimento físico, a tortura e o apagamento de toda uma história. Refleti que a vergonha pode estar entrelaçada com o aprendizado. É reconhecer que memória não é apenas resgate de fatos passados, mas a forma como os aprendizados do presente se constroem a partir deles.

A narrativa aponta, com precisão, que o passado não se encerra com uma revelação: ele pede uma reconfiguração subjetiva, uma revisão que incorpore a vergonha não como peso, mas como pista para o que precisa ser visto, dito e reparado. Quando a protagonista confronta segredos e as mentiras que os cercam, a pergunta que se impõe é: que tipo de vida podemos reconstruir a partir de memórias que não foram simples lembranças, mas feridas em potencial de reparação? A resposta do romance, para o observador atento, não é apenas de redenção individual, mas de reconhecimento de que o tempo de amadurecimento envolve enfrentar o que a vergonha tentou ocultar. Nesse sentido, a obra sugere que a transformação legítima nasce do confronto com o passado, não como gesto de masoquismo histórico, mas como prática de responsabilidade ética com o que foi vivido e de que modo ele ainda persiste em nossas ações, escolhas e aprendizados.

É preciso repensar atos, coragens, vergonhas e memórias para que não repitamos o que deveria ser aprendido, enfrentado e resolvido.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Tempo sem ponteiros

Está tudo bem!

obra inacabada