Moradas de todos nós II
A varanda de Betania
Seu refúgio, a varanda ensolarada e cheia de plantas de Betania tornavam seu mundo mais ameno na capital. Recém-chegada do interior, trabalhava em um grande hospital como enfermeira. Suas noites em claro se traduziam em grandes olheiras e hematomas de batidas. Às vezes ao caminhar, algumas ao dirigir. Precisava do trabalho noturno para garantir a educação do pequeno Rafael, seu filho de dez anos, que morava com seus pais. Viúva aos 20 anos, teve que abandonar planos e sonhos e optar por uma profissão que lhe desse sustento. Foi vendedora, diarista e motorista enquanto fazia faculdade de enfermagem. Formada, conseguira o emprego naquele grande hospital da capital.
Apartamento alugado, o único luxo era uma área de sacada que encheu de verdes e flores. Era um pedaço da natureza tão amada que trazia para o cinza da cidade. Era ali que sonhava, enquanto aguava suas plantas e ouvia suas canções. Ali os pássaros vinham cantar em profusão nas manhãs de suas chegadas. Ali que dava sua última olhada, nas partidas.
Aos pacientes que atendia com um sorriso encorajador, contava das colheitas, trocava ideias e murmúrios. Aos colegas que tratava com estudada gentileza, trazia flores que enfeitavam a concorrida sala de atendimentos. Era da sua varanda que extraia a seiva vital que a mantinha viva.
A capela de Matilda
Tremia olhar aquele crucifixo gigante que era famoso em toda a região. A pequena capela, erguida por seus avós, naquele lugar ermo onde ficaram raízes quando chegaram em terras brasileiras, era em tudo serena. Paredes brancas caiadas, formas simples e poucos adornos. A não ser aquela cruz que reinava soberana sobre o pequeno altar.
Sua avó Catarina desfiava longos rosários olhando aquele Cristo com fervor. Matilda achava lindo. Tão sagrado lhe parecia aquele ritual que um dia não resistiu e entrou furtiva no cair da tarde naquele local tão protegido. Foi quando começou seu calvário. Mãos que deviam lhe dar conforto, machucavam sua vida.
Tremia lembranças do que durou anos que nunca conseguiu esquecer. Nem o olhar desdenhoso das avós e mães que lhe negaram conforto. Deixara de ser criança e passara a ser pecadora. Seria sempre crucificada como aquele homem ensanguentado que teimava em lhe olhar do alto de sua sina.
As ruínas de Margarida
Entrar na casa que fora sua quando pequena não trouxe muitas emoções à Margarida. Mesmo que estivesse praticamente abandonada e matos cobrissem a entrada daquela que nunca fora mais que uma tapera. Margarida saíra dali muito pequena, naquele tempo que as memórias mal tem tempo de se costurar na mente da gente.
Levada por uma família conhecida, com a promessa de estudar enquanto trabalhava, foi sem saber o que a esperava. Só sabia que ali, naquela casa que nascera, nada podia esperar.
Nada na sua vida fora fácil. A promessa vã da infância ficou perdida entre as lágrimas nas noites mal dormidas e no corpo dolorido de tanto trabalho. Fugiu da casa dos bem/mal feitores, vendeu a vida e o corpo para viver. Estudou como deu, nos livros que encontrava nos lixos e nos programas de apoio. Sua vida foi pálida e magoada.
Voltou para casa como quem volta para o útero, no dia do enterro da mãe. Dela e da casa, só sobravam ruínas de algo que poderia ter sido, mas nunca pode cumprir seu destino.
A piscina de Roberto
Minutos angustiantes passaram por Roberto enquanto ele olhava na borda aquela piscina.
Sua vida podia ser resumida em quantas voltas dava naquelas raias que o enlouqueciam de paixão desde pequeno. Sempre gostou de nadar. Fora d'água era tímido, meio sem jeito de comunicar o que lhe ia na alma. Mas na piscina era rei. Como se a água e ele se mesclassem em simbiose e se transformassem em algo amalgamado.
Foi assim até que recebeu o primeiro golpe. Engoliu águas e sufocou. Mas era jovem e seguiu.
Na segunda vez foi mais difícil digerir a água. Mágoas e tristezas voltaram à tona e tomaram conta de um pedaço de sua alma. Mas continuou tentando.
Na terceira vez desistiu. Foi embora e se recolheu em pequenezas que lhe tiravam o brilho do olhar. Era a maturidade, pensou. A vida é assim, se dizia em pensamento. Loucuras da juventude nem sempre se levam como bagagem de vida.
Morria a cada dia. Mas em suspiros nada fazia.
Até que (viu) um sorriso. Um aceno. Um lampejo de beleza que refulgia do outro lado de uma piscina. Suores escorriam. Angústias se assomavam. Ele todo tremedeira. Num último suspiro se deixou levar
Mergulhou.
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