Moradas de todos nós

 

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A casa de Maria

Acordou amarguras e olhou com desdém para sua cama desarrumada. Não iria alisá-la, não iria organizar nada. No máximo um lençol jogado ao lado e seguiria a vida.

Seus sapatos reunidos em um encontro maluco, se olhavam, par de um com o par de outro. Os livros se empilhavam poeirentos como as mágoas que guardava na alma.

Todo dia, em algum momento, pensava distraída que precisava arrumar um pouco porque perdia coisas. Aquela blusa que gostava e a tornava mais radiante. Aquela bolsa que tanto lhe trazia felicidade ao lembrar do momento em que a ganhou. Os escritos, os poemas, as anotações feitas em papéis jogados ao vento, repousavam em algum canto deserto e escondido.

Maria olhou sua casa com conforto e tristeza. Era uma cópia dela mesma. Jogada para depois. Um dia, quem sabe. Hoje a correria do fazer e sobreviver chamava mais alto. Pegou a máscara do faz de conta e desceu com a cara de dia bom que sabia tão bem desenhar em seu rosto.

A mesa do Joaquim

Há dias Joaquim chegava no escritório com um peso no coração. Poucos notavam seu ar mais sério, escondido no rosto amável com que fazia suas tarefas e respondia às conversas amenas de toda hora. Por dentro seu coração sangrava. O salário pequeno que mal dava para as despesas de todo dia. A velhice chegando e tão pouca segurança. A mulher mais nova que o deixava por outro também mais jovem. O colega um pouco mais novo que parecia tão bem com a vida. Tudo era punhalada em seu peito apertado.

Era Natal, tempo de festas. Dentro dele, só tragédias. Uma piada sem graça lhe subiu como torpedo. Em outros dias seria tolhida, guardada no armário das amarguras escondidas. Mas logo hoje calhou de ferir feito ferro quente entrando no peito. Hoje não guardaria. Hoje iria em frente, de peito aberto, sem pensar, sem parar.

No hospital, entre as feridas do soco sendo curadas, pensou que a vida é feita de momentos cruciantes. Entre as perdas, pensou em quem ocuparia sua mesa, seu reino, seu mundo.

A casa nova de Madalena

Madalena e Felipe casaram jovens e moraram grande parte de suas vidas naquela imensa casa senhoril, em uma rua pacata cheia de árvores. Os filhos cresceram, as dores chegaram, já era preocupação dos netos aquela escada que subiam e desciam todos os dias. Decisão tomada, eles foram informados. Já estavam naquela etapa da vida em que a autonomia é perdida na forma de preocupação de quem os ama. A vida é feita de escolhas e nem sempre elas partem de nós. Madalena sabia disso. Era sábia.

Se armou de alegrias juvenis e bordou enxoval para a casa nova, menor e mais perto de quem os pudesse cuidar. Seus dedos ágeis criavam minúsculos pontos em cruz para panos, cortinas e enfeites. Sabia que a vida se faz de leveza e fluidez.

Não adiantava fixar raízes em um lar que não mais lhe cabia. Que ficasse na memória dos momentos vividos, tão reais em seu coração como se ainda os vivesse. Seus olhos brilhantes da juventude dos que sabem encarar a vida, já antecipavam uma nova vida começando. Fazia planos. E sorria.

A cozinha de Cida

Amplas janelas que mostrem quem chega para quem cozinha. Este pedido deixou a arquiteta recém-formada com cara de surpresa.

Ela é da cidade, sorria o marido de Cida, se divertindo com a falta de noção de vida da jovem profissional.

É que moramos para fora, onde a vida se faz de trocas e sem presilhas. As porteiras ficam abertas e os vizinhos chegam sem pedir. Nossa vida é simples e direta. Gostamos da claridade e das aberturas que tragam o mundo para dentro de nossas vidas. Sem aqueles vidros que não prestam porque escondem os mundos de dentro para os de fora. Não temos o que esconder. Nosso fogão é acolhedor, nossa louça colorida. Nossa mesa farta e generosa. Gostamos de olhar o mundo de frente e sorrir para as violetas na janela. Se aquieta, moça da cidade, você se acostuma rápido com essa vida tranquila. O fogo da lenha crepitando, o cheiro do pão entrando pelas gulas e fazendo par com a manteiga novinha, junto das frutas colhidas no pomar. Nossa cozinha é pulmão e estomago gostoso. Por isso é tão vital que seja assim clara e aberta!

O Tumulo de Antenor

Antenor era em tudo certo. Nascera de parto normal. Fora daquelas crianças que nunca dão trabalho. Não chorava (muito), não fazia artes. Foi bom aluno, embora não brilhante. Trabalhou no mesmo emprego, recebendo condecorações por ser trabalhador do mês em vários deles. Os colegas gostavam dele. Casou com a namorada de infância. Teve filhos de praxe. Brincou com netos. Um cidadão responsável e de bem, conforme o epitáfio. O enterro tinha sido planejado no tumulo que comprou a prestações e deixou pronto para não incomodar a família.

O que a vida não contou é que cada passo foi em brasas. Que o vulcão labareda que nele morava era represado com a força dos resistentes. Que ninguém nunca viu a chama que havia em seus olhos. Apenas uma única vez. Uma mulher que encontrou pela rua. Um esbarrão, uma paixão. Um segredo.

Guardado com a rebeldia dos inocentes. Trazia dentro de si uma alegria recôndita que merecia páginas de literatura. Era seu combustível de vida e miragem. Morreu sorrindo após um mês da partida de sua companheira escondida. O tumulo dela, também comprado por Antenor, ao lado dele.

Dizem que nas noites de lua cheia o vento uiva e os ramos dos plátanos plantados nas tumbas, se tocam em promessas de vida eterna.

Comentários

  1. Muito bom. Microcontos em torno de casas.

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    1. Obrigada. Inspiração pessoal e profissional, S moradas nos conformam. Abraços

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  2. Muito bacana o formato! E sempre uma delícia te ler...

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  3. Que delícia de leitura, é como se nos encontrássemos em cada pedaço de história! Deixa o coração quentinho e a mente cheia de pensamentos.

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