Não é melhor continuarmos imperfeitos?

Gustavo Czekster

 A Nota Amarela e as impressões de leitora

Antes que comecem a ler, já aviso que isso não é uma resenha sobre o excelente livro A Nota Amarela do Gustavo Czekster. São impressões de leitora.

Em primeiro lugar devo dizer que sou super fã do Gustavo. Pessoa e escritor. Seus dois primeiros livros de contos me encheram a alma de leitora com deleites. Quando soube de seu primeiro romance, lá estava eu na fila de compras virtuais. 

A Nota Amarela. Um desafio para quem cria. Talvez um desafio para todo ser humano. Aquilo que "se oculta na sequência das coisas e dentro de sim mesmo para assim trazer alento - e salvação a esse nosso mundo tão áspero". Assim comecei a leitura, pela dedicatória, que sempre me toca. O livro impresso tem dessas magias de contato, de pegar, de sentir. Quase um ritual sensual de se apoderar das ideias e palavras que os autores lançam em suas obras e que, nós seus leitores, nos apossamos com volúpia. Ou desdém. Ou estranheza. Ou deslumbramento. Ou tudo isso. Porque, de certa forma, a leitura é como tocar uma música de outro autor.

Voei? Talvez. Neste momento fiz como no início da leitura. Abri o youtube e estou ouvindo o Concerto para violoncelo de Edward Elgar em mi menor, op. 85 com Jacqueline du Pre regida por Daniel Barenboim. E é sobre isso que trata o livro. Os minutos de magia de um concerto. Para quem conhece música instrumental, ou seja lá o nome que os entendidos a chamem, escutar essa gravação é um deleite inexplicável. (Sugiro que leiam os comentários no vídeo.)

Mas é mais que a descrição de uma excepcional violoncelista, no auge de sua técnica, regida pelo seu jovem marido. O livro faz uma viagem pela busca pela perfeição, e até mais que isso, porque muitas vezes a perfeição pode ser alcançada pelo domínio da técnica, pelo suor aliado ao talento, mas a nota amarela, o "huang chung" é muito mais que isso. É alcançar a nota primordial, é quase ser uno com a arte que se quer representar. É como se encarar de frente ao mistério e mergulhar de cabeça e entrega. Jacqueline du Pre era uma artista que brincava com a música, pelo que li sobre ela. Sim, o livro te leva a querer saber mais, a escutar sua música em outros meios e ferramentas. De certa forma, é uma armadilha (do bem) ao conhecimento e ao despertar dos sentidos que a música traz.

Um adendo. Estamos em épocas cruéis. A música instrumental tem me feito companhia de uma forma que desconhecia. Tenho para mim que a arte, todas elas, são um elo nosso com a humanidade que nos habita. Elas nos ligam ao que de mistérios e belezas temos dentro de nossas almas, e que nos abastecem contra as barbáries da vida e das sociedades. 

Voltando ao livro. Impressões da leitura. Sendo um romance, e ao mesmo tempo, um romance dentro de um trabalho acadêmico, não senti a mesma fluência dos outros livros do autor. Ao mesmo tempo que sentia um refinamento na escrita, uma evolução (nesse sentido) das técnicas de burilar frases e efeitos, aquela liberdade de outros livros, me pareceu mais distante. Me lembrei de uma história zen onde um monge olha uma árvore e sabe que é uma árvore. Depois ele entra em um mosteiro e estuda tudo sobre uma árvore. Depois que se torna um mestre, ele deixa tudo de lado e vê uma árvore...como uma árvore. Talvez seja isso também o encontro com a Nota Amarela, uma forma de iluminação. 

O livro segue uma ondulação, como na música. Tem momentos mais intensos, outros mais técnicos, outros de angústia. Em todos eles, a descrição de como a artista se sentia me impressionou pela riqueza de sensações ao tocar, e ao mesmo tempo pelo retrato de uma jovem, no auge de sua técnica e paixão pela vida, uma mulher tão humana quanto qualquer uma de nós, uma mulher com um tesão pela música, com uma alegria infantil/adulta de se jogar e ser feliz fazendo o que lhe fazia feliz.

Não é o que queremos todos? Não importa se somos ungidos por um talento único para a arte, ou se sabemos fazer um pão com maestria, ou qualquer outra habilidade que nos faça sair do chão, esquecer as horas, mergulhar na vida e nos aproximar da nossa Nota Amarela.

"estamos preparados para saber que existe uma porção de Deus dentro de cada um de nós e que pode ser atingida através da arte, esta loucura tão humana? Não é melhor continuarmos imperfeitos?" Gustavo Melo Czekster - A nota Amarela


Talvez, e digo talvez, porque essas são reflexões pessoais sobre a leitura, o querer buscar a perfeição nos afaste justamente daquela entrega que as traga para nós. 

Ao acabar o romance eu tinha a sensação de ter lido um concerto. Com todas as suas nuances de ritmo e sensações. 

E entrei então no ensaio "sobre a escrita". Outro livro. Outras emoções. Outras explicações.

Diria que é um legítimo 2 em 1. As duas leituras por demais instigantes. Os minutos de um concerto de uma artista que teve um fim trágico ou melancólico, em função de uma doença paralisante, quase como um simulacro de Icaro (como bem descreveu o Gustavo em uma live), aquele que ousou se aproximar de Deus e foi punido, tendo suas asas derretidas. A mostra perfeita de que humanos somos. O ensaio fala sobre as próprias questões de humanidade e finitude do autor. 

São várias leituras. Várias conclusões. E não é um livro que termina ao se fechar as páginas.   

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