O carnaval que quase acabou com o meu nascimento


O som metálico da aliança jogada longe soou como um trovão no piso da Praça Saldanha Marinho. Era fevereiro de 1944 e o carnaval ia começar naquela sexta feira, dia 18. Helena tinha esperado com ansiedade a vinda do seu noivo, Paulo.  Haviam se conhecido cinco anos antes. Um cruzar de olhares e parecia que tudo tinha feito sentido. Mesmo os longos momentos de separação. 

Ele continuou a morar na sua Cachoeira do Sul, fez concurso para o Banco do Brasil. Ela tinha ido para Passo do Sobrado, Porto Alegre, navegado para a capital que ainda era no Rio de Janeiro. Sobreviveram à cartas censuradas, tanto para a família como para o governo que havia, enfim, aderido aos aliados na luta contra o eixo. Eram os tempos conflituosos da Segunda Grande Guerra. Na Europa, a luta corria sangrenta. Poucos sabiam das perseguições às minorias daquele governo alemão que usava a eugenia como política de promoção da melhoria da raça germânica.

Aqui no Brasil os descendentes daqueles alemães, que cruzaram o Atlântico em busca de novas esperanças, encontravam novos desafios. Sua língua materna, já desvirtuada por dialetos, era proibida. Sobrenomes tedescos eram vistos com desconfiança e obrigados a usar salvo condutos para se deslocar. Paulo não usava o sobrenome Stein nas cartas que mandava à namorada no Rio. O prosaico Silva era bem mais seguro. Mas como também sabia que as cartas passavam pelo crivo da tia, irmã e cunhado, combinou com Helena, a sua Leninha, um código secreto com as letras ressaltadas. Só ele e ela sabiam o que se diziam nas saudades que sentiam.

Paulo tinha sido convocado para servir nas forças expedicionárias que se preparavam para lutar na Europa. Ele, na seu heroico pensamento de jovem idealista, achava que seria seu dever. Teria ainda a possibilidade de conhecer o velho continente, o que lia em seus livros de história e desde já sonhava com a França e a Itália. Órfão e arrimo de família, nunca imaginava que poderia viajar para tão longe. Mas essa mesma condição de ser quem garantia o sustento da sua mãe e três irmãos, fez com que sua convocação fosse eliminada. Quem partiu no lugar dele, sempre foi uma de suas questões.

Não dava para ir para a Europa? Ia de trem ao Rio, visitar sua namorada. E aproveitar para conhecer a Cidade Maravilhosa. Ah! O Cassino da Urca! Tinha um gringo por lá, um tal de Orson Welles, gravando um documentário naquele carnaval de 1942. Quem sabe suas câmeras não o tivessem captado também? Infelizmente o tal documentário nunca foi ao ar. Parece que o Welles aprontou todas no Rio. 

Helena, por sua vez, acreditava que Paulo ia ao Rio para firmar o compromisso. Estava tudo arrumado para a festa de noivado. Qual nada! Paulo era resoluto, mas muito ponderado. Tinha apenas 21 anos, uma família para suprir e ainda não se sentia em condições para assumir uma decisão tão importante. Por enquanto, eram promessas, uma caixa de bombom e juras de amor.

Paulo voltava ao sul, aos concursos, aos jogos de tênis, às remadas no Rio Jacuí e aos namoricos com as amigas locais. Helena continuava no Rio, com os passeios, com os olhares e cortejos dos tenentes que, segundo sua tia Julieta, "nunca se desilude ninguém, minha filhinha". 

E a Guerra seguia na Europa. 

Helena volta enfim ao Rio Grande do Sul, já com Paulo mais decidido e pronto para o passo mais aguardado, o casamento. Marcado para novembro de 1944, conviviam ainda em cidades diferentes. Ele na sua Cachoeira do Sul, Helena com outra tia, desta vez a Palmira, tia em cuja casa nascera em Cruz Alta e que agora vivia em Santa Maria. Seu marido era gerente do Banco da Província e vivia itinerante. Sua irmã, Tila, morava com eles.

Era carnaval de 1944. O último que passariam solteiros. E ainda seria o aniversário de Paulo, no dia 24. Oportunidade para passarem mais dias juntos, Helena já tinha feito planos e tinha a cabeça e o coração cheio de expectativas quando, no passeio por perto do coreto da Praça Saldanha Marinho, ouviu as palavras de Paulo.

Projetado pelo engenheiro alemão Richard Ziemeck Klaue, o coreto só foi concluído após a conclusão do calçamento da praça, em 1935. Não era tão bonito como o Chateau D'Eau da praça da Matriz em Cachoeira, mas era um local lindo para dois enamorados se encontrarem. Mas naquele dia, poderia ter sido o cenário de uma separação e eu não estaria aqui para contar essa história.

-Vou passar o Carnaval em Pelotas com o Tavares.

As palavras ecoaram como pesadelo para Helena. Pelotas era uma cidade conhecida pelo sua folia. Ela já imaginava as orgias que o seu noivo iria fazer. Não importava que o Tavares fosse um querido amigo, daqueles que iria perdurar toda a vida deles. Naquele momento ela só ouvia sua voz interna gritar: E eu? No momento de ter tempo para curtir, ele prefere a folia e o amigo à noiva. Não pensou duas vezes e fez um movimento resoluto, começando um discurso:

Para que tu, Paulo Leitão, entendas que.... e tirando a aliança do dedo direito a jogou fora com força. Ao mesmo tempo que virou e correu para a sede do banco, onde moravam.

Paulo ficou só na praça. Foi em busca da aliança e também resoluto a pegou e guardou no bolso. Polaquinha dura na queda aquela. Por isso também se apaixonara por ela. Depois do carnaval resolveria isso.

Aqueles dias de festa de 1944 viram os dois brincando, cada um em uma cidade. Quando pergunto para a mãe sobre aqueles dias, recebo um olhar matreiro e brilhante. Quando perguntava ao pai como tinha resolvido aquela briga, ele sorria com seu ar sedutor e dizia que era formidável porque tinha me arrumado a melhor mãe do mundo.

Aquele ano de 1944 trouxe a festa de uma guerra que acabava na Europa. Em novembro meus pais se casaram. Nunca trocaram a aliança da mão direita no seu pacto de serem eternos noivos pela vida.  

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

amantes eternos (divagações com a IA)

Dos meus pertences

Das podas necessárias