Em outros carnavais quando a vida era mais solta


Diálogo entre Antônia e sua cuidadora, em um quarto de uma clínica de repouso. Antônia tem 95 anos e sua cuidadora, Dora, vinte.

- Seus remédio, Antônia. A pílula rosa é para a pressão, a branca para o colesterol, a amarela para a ansiedade, a rosa para afinar o sangue, a comprida para a memória.

- Memória? Brincas comigo. Fora! Memória é bom para gente jovem como tu, que tem futuro pela frente, que precisa lembrar de quase tudo o que fez. Para repetir ou se arrepender. Quando se está velha como eu,  melhor nem lembrar que dia é hoje e quanto tempo falta para morrer. 

-Deixa de bobagem! Falando nisso, sabes que dia é hoje? 20 de fevereiro de 2050. Domingo. Na tua época era carnaval, Antônia! Vai dizer que tu não gostava de comemorar a folia? Ouvi dizer que eram grandes festas populares no século passado. Minha mãe disse que se lembra ainda de bailes infantis onde ia fantasiada de uma coisa chamada de mulher maravilha. Devia ser algum avatar da época. Ela falou daquele parque que foi destruído na grande inundação de 2030, Disney alguma coisa.

-Carnaval...lembro bem. Minha primeira paixão aconteceu em um baile de carnaval. Era um salão de clube no interior do estado. Naquele tempo o Brasil ainda era um país soberano, tinha uns 23 a 26 estados, nunca decorei direito. Foi antes de elegerem aquele presidente que nos anexou à grande América do Norte. 

-Eleição? 

-Sempre me esqueço que vocês, jovens, nunca viveram numa democracia. Naqueles tempos haviam eleições para tudo. De prefeito à presidente da República. Vocês nem sabem mais o que é república...

-É o reino terreno de Deus?

-(suspiro). Deixa para lá, melhor falar da paixão no carnaval. Lembro que tocavam marchinhas que depois foram proibidas, " o teu cabelo não nega, mulata", "vou beijar-te agora, não me leve a mal...". O garoto, um ano mais novo que eu, que me abraçava no meio do salão, me olhou nos olhos e me beijou. No mesmo instante ouvi violinos, a imagem do baile se desfocou e o tempo pareceu parar. Foi um pequeno segundo que durou um eternidade...

-(suspiro). Devia ser bom este tal de carnaval. Por que será que proibiram os bailes com fantasias? Só sobraram as procissões. As folias era também bonitos assim?

_(procissões? Guria mais doida. Onde já se viu misturar religião com algazarra...)

-Gosto das histórias que tu contas, Antônia. Muitas vezes te confesso que não sei o que era real, o que é fantasia tua. Mas não importa. São bonitas mesmo assim.

-Nem  eu sei, Dora...tantos carnavais passaram. Teve aquele do porre com uísque. Teve o da briga no salão. Teve o do nascer do sol na praia com um amigo que não era meu namorado, mas que balançava alguma coisa por dentro. Teve desfiles em blocos. Teve o da viagem sozinha para Canoa Quebrada. Teve aquele da casa do pescador e da turma que eu nem conhecia. Teve aquele que conheci aquele que mudou minha vida.

-Conta....

-Estava em uma fase triste, tentando esquecer um cara que magoara meu coração, devia ter quase 30 anos. Resolvi viajar. Nada de pular. Nada de fantasia. Ia para um spa de meditação no México. Mas no aeroporto meu caminho se bifurcou. Caí na malha de olhos profundos e me afoguei.

-Afogou? Foi sério? 

-Muito. Fui tragada e nunca mais saí. Até que...

-Desculpa Antônia, tenho que sair. Mas amanhã quero saber mais sobre esse afogamento.

-Vai, Dora. Tenha uma boa noite, abraço nos filhos, são quantos mesmo? Oh, nenhum...confundi com a outra, como é mesmo o nome? Não importa, são todas iguais, mudam cabelos e faces, mas o mesmo cuidado com horários e pílulas, o mesmo protocolo de perguntar pelas memórias como se interessasse. Conheço vocês, sei que meu dinheiro compra atenção e carinho. Não fosse isso, há muito teria  me dado um para te quieto. Aquelas injeções calmantes que nos levam para outras dimensões. Já não chamam de eutanásia  mas de conforto moral. Vou sim, te contar mais da minha vida. Vou te falar dos beijos avassaladores, das promessas, dos calores. Das trocas não apenas de odores e selvas, mas de essências. Também vou te falar das dores, dos cansaços. Das rotinas de hospitais, dos tubos que rasgam traqueias, das sondas que machucam, da luta por um respiro mesmo quando nada mais faz sentido. Do amor que se vai apagando aos poucos nos olhos que queimavam tua pele. Da voz que te dizia sacanagens, perguntando quem és. Da administração de tudo isso. Do cansaço. Do cansaço que vira rancor. Do amor que luta para emergir. Da vida que puxa para baixo. Amanhã te conto, Dora, se meus olhos ainda abrirem para mais uma manhã de carnaval. 
...

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