Ajuste de contas


A fome apertava enquanto a manhã corria. Nem se dera conta das horas passando e já chegava perto do meio dia. O café bebido às pressas ainda na madrugada há muito já tinha sido digerido. Não importava. Logo tudo teria termo.

Suava enquanto corria as mãos pelas roupas, imaginando qual a mais adequada para caber em uma mala pequena. Era tudo o que levaria. Toda uma vida se resumiria em duas calças, duas camisetas, um vestido e poucas roupas de baixo. E um livro.

Nada mais sobrava da vida. Seus amores que tantas emoções lhe rendera, como na música do Roberto, ficariam na lembrança dos tempos de vida. Os trabalhos amarrotados na vida se juntariam ao cansaço de recomeçar.

Ela toda cansaços.

Ela toda amassos.

Ela toda apenas uma minúscula poeira de alguém que um dia tivera sonhos de quimeras. Adolescera. Adoecera. Agora se ia.  

O gato miava solitário em um corredor da madrugada. Alguém gritou reclamando que a cerveja estava quente. Um ambulância cruzou a noite com a sua sirene de emergências. Rezou com força para que a rota se fizesse com sucesso. Que chegasse a tempo de haver a cura. Se não chegasse, que houvesse dignidade na partida.

As partidas doíam. Deixavam para trás uma bagagem de lembranças. Mas também traziam aquilo que abastece a alma: esperança de tudo vai ser diferente.

Podia até não ser. Mas igual com certeza não ia ser.

Não ela. Jamais com ela. 

Nunca mais os mesmos suspiros. Não mais os mesmos silêncios de vergonha. Não mais os olhos roxos. Não mais o choro engasgado de pesar. Não mais o amor roto. Não mais as mãos que percorriam sem abandono seu corpo sem vontade.

Foram muitos anos. Foram muitos homens. Foram noites e dias em que ela padecia de não ser ela. Agora não mais.

O gato miou novamente como fazem os bichos vadios em noites de lua cheia. Pela primeira vez, em muitos anos, ela sorriu de puro prazer. Ia na madrugada para nunca mais. 

A força da virada viera com amigas. Uma conversa na parada. Outra no trabalho. Mais e muitas na reunião de ajuda. Cada uma consolidando uma catarata dentro dela avolumando. Quando rompe não tem força que segure. Não tem medo que ataque. A vida jorra mais rápido. 

Seus passos equilibravam-se nos saltos altos que para todo ato heroico é preciso uma fantasia de super heroína. O batom vermelho iluminava um rosto sem pudores. O que rompera dentro dela era um ato revolucionário. Nunca mais sem prazer. Nunca mais por obrigação. Nunca mais uma mulher anulada.

Afrodite que me aguarde, pensou no livro que acabara de ler. A alegria é o maior dos atos de rebeldia. 

Uma gargalhada se ouviu na rua deserta. O gato eriçou os pelos e continuou sua jornada.   


    

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