Ansiedade nossa de cada dia, salvai-nos da barbárie
Chove, venho de um encontro denso, cheio de conteúdo e ainda estou digerindo tudo o que ouvi. Não sei se vou assimilar como deveria. Não sou uma intelectual com a bagagem necessária para discorrer sobre assuntos complexos com a devida profundidade. Muito mais me aproximo das pessoas comuns que curtem ler mas de filosofia só conhecem leitura de almanaque e da vida só tecem considerações sobre minhas emoções e experiências. E inperiências. Aquilo que vivo para dentro sem a devida permissão de se expor à vida. Mais ou menos como pesquisas acadêmicas que lançam luzes sobre teorias, desconsiderando o mundo real.
Uma questão me fica. Há condições de ter cultura sem ansiedade?
Qual o papel da inquietação na construção de nossas certezas? Seria a entrada em seitas e grupos, aqui incluídas religiões e agrupamentos políticos, uma tentativa de viver certezas em tempos cada vez mais líquidos?
A ansiedade é entendida como "um estado psíquico de apreensão ou medo provocado pela antecipação de uma situação desagradável ou perigosa." Antecipação tem um componente importante. De certa maneira está ligada ao desejo de saber como será o porvir, como se de repente a comodidade dos oráculos nos fosse tirada e as dúvidas ficassem sem respostas. Ou com várias respostas. O que não é o mesmo, mas é mais inquietante.
Se existe mais de uma certeza, qual a correta? A minha? A tua? Onde embasar os atos que regem a vida para que faça algum sentido.
Há sentido na vida?
Na Psicologia a ansiedade pode ser vista como a "condição emocional de sofrimento, definida pela expectativa de que algo inesperado e perigoso aconteça, diante da qual o indivíduo se acha indefeso."
Indefeso.
As minhas ansiedades caem
Por uma escada abaixo.
Os meus desejos balouçam-se
Em meio de um jardim vertical.
Na Múmia a posição é absolutamente exata.
Música longínqua,
Música excessivamente longínqua,
Para que a Vida passe
E colher esqueça aos gestos.
Fernando Pessoa, in 'Cancioneiro'
Indefesos diante da inquietude. Carentes de respostas que corroborem nossos atos, nos cercamos das certezas e aprovação alheias.
E quando nossos pares aplaudem coisas que abominamos, nossa inquietude interna explode em emoções ambíguas. Tudo bem que pensadores afamados e que admiramos pensem quase como nós. Ou nós como eles, para ser mais exata. As mentes racionais se entendem. Mas quando nossos afetos próximos se distanciam de nossas percepções, mexem com algo profundo dentro de nós.
Muito mais fácil seria deixa-los de lado. Exorciza-los nas fogueiras da intolerância e abafar seus pensamentos como impuros. Mas isso nos aproxima do mais temeroso dos atos: a barbárie do pensar único. O se apegar às certezas como se dogmas fossem. Enquanto que a saída humanitária e civilizatória é examinar a ebulição das contradições, é aceitar as respostas várias, é entender que cada ser é um oceano de descobertas e experiências únicas.
Não sei se entendi as teorias dos grandes mestres. Muitos já mortos. Sei que foram seres inquietos e isso neles me fascina, mais do que suas palavras que hoje são cristais fechados dentro de livros e alguns se tornaram dogmas para outros que apenas os leram e não os deixaram na sua função de cutucadores de consciências.
Ansiedade nossa de cada dia, deixa-nos longe das respostas fáceis e das receitas prontas. Que a vida se faça ao se viver.
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