Tudo que morde pede socorro


Ler Cinthia Kriemler é um ato ao mesmo tempo desafiante pela sua temática, mas também fascinante pelo envolvimento com que suas frases e palavras bem construídas vão nos enredando em uma armadilha de aprisionamento. Deleitoso aprisionamento. 

A começar pelo título altamente instigante: tudo que morde pede socorro. Só ele nos leva a pensar muito no significado. As carências que geram violências, as rudezas que escondem chamamentos. A sina do ser humano de ser único e ao mesmo tempo gregário. E nem sempre saber lidar com isso com a devida tranquilidade.

Tranquilidade não é o que se vai achar neste livro. Sua diagramação já nos mostra a ideia de grilhões que são arrebentados. Uma alforria que se conquista, nunca uma dádiva. 

Quando recebo um livro, meu processo de leitura é altamente sensorial. Primeiro eu o namoro. Mentira, antes de tudo, eu sinto um prazer sensual pelo embrulho do correio. É como se o abrir fosse desnudando um ser, um reconhecimento que se anuncia devagar. Olho, demoro na capa. Vejo a contracapa. Leio a orelha. Se tem dedicatória, saboreio como uma ligação meio íntima com o autor. Depois deixo que ele me capture. Fica meio por perto, não raras vezes ando com eles pela casa, esperando pelo chamado. Esses dias ouvi que Amos Oz dizia que a convivência com os livros tem um quê de sensualidade. De descobertas, toques, sedução. O segundo romance da Cinthia me acenou com possibilidades enquanto olhava para ele...

Quando finalmente o abri, a leitura veio em vertente. Capítulos rápidos, o que gosto muito. Os primeiros quase poesia. Outra coisa que me agrada na escrita da Cinthia. A costura das palavras têm uma ritmo ondulado, quase uma música. E talvez aí uma de suas maiores magias: ela fala de cruezas com leveza. Não pensem em leveza de não mergulhar nas profundezas. Muito pelo contrário. É a medida correta de ir revelando a vida como ela se apresenta para tantos, mas sem pecar pela rudeza das palavras. Já bastam as violências que as personagens vivem. Escondem. Sentem. Respiram. Sobrevivem. Nem todos, é verdade.


Leonora, a personagem principal, perpassa pela pequena cidade de sua infância, onde foi viver sua agonia de redescobertas. Qual como nossas jornadas em busca de nosso eu mais recôndito. Não é uma heroína. Nenhuma das personagens, aliás. Todas falhas. Todas grandiosas em suas humanidades. 

Mulheres são as protagonistas. Até nas vilanias. Não por acaso, os homens são coadjuvantes das histórias tantas que vão se encadeando nas suas misérias, nas suas descobertas, nas suas migalhas de resiliências e possibilidades de existir.

O eixo básico me parece estar na frase: mulher nenhuma merece. Merecer é um verbo mau.

Ninguém merece menos do que uma existência onde possa escolher, por pouco que seja. Ninguém merece ter que aguentar o que não quer, o que não devia, o que é vilania alheia. Todos deveriam poder gritar, sem ser de dor. Mas não é assim a vida. Especialmente para as mulheres.

Mas não, o livro não traz lições de moral, nem soluções fáceis. Até porque essas não existem na vida real. Ninguém consegue resolver a vida alheia. Às vezes nem a sua própria. 

Não é um livro que se leia por distração. Ele instiga, deixa dúvidas. Inquieta. 

Terminei o livro com uma sensação estranha. Como se uma grande sinfonia fosse num crescendo e terminasse em notas dissonantes. Talvez um nó pela realidade de tantas mulheres serem uma nota sem compasso onde existam poucas saídas. Mas as que existam passem pela libertação de grilhões eternamente colocados em cada uma. Invisíveis como seus próprios anseios. 

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Comentários

  1. Há poucos dias me apeguei a Beatriz, de "Todos os Abismos Convidam para um Mergulho". Deixei o pacote durante meses sobre o guarda-roupa. Até que, em dia de extrema dúvida e angústia, resolvi abrir e decidir se iria muito fundo em meu abismo ou procuraria um fôlego, afinal, literatura nos motiva a ações! Estou muito envolvida, o tema fulcral ali me toca! Ausência de entes familiares em seus papéis. Ausência de vitalidade em consequência. Ausência de vida, enfim.
    Lendo a tua resenha de "Tudo que Morde" sinto o eco por aqui. Lerei! Os grilhões têm a ver com os tais papéis que se impõem. Eu ando tomando melhor consciência e renegando alguns. É este o momento que Kriemler me encontrou! É momento, doloroso mas enriquecedor, aliás, tal como o jeito que ela escreve. Resolvi tomar fôlego, com literatura é mais fácil!

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    1. Que belo depoimento Otacilia! Passei para a Cinthia e ela se emocionou muito. Mulheres que escrevem sempre se fazem necessárias às mulheres que as precisam ler. Tome fôlego! Estamos juntas.
      Abraços

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