O amor é um ato político



Das vezes em que se amaram perdera a conta. 
Das que discutiram também.

Ela doce como as meninas bem educadas. 
Ele desde sempre questionador.

Se cruzaram depois das Diretas que levou de roldão um país já desacostumado a escolher seus destinos.
Tecnicamente era ainda tempo de romper amarras.

Ela doce como as meninas bem criadas ia à passeatas enquanto alardeava certezas.
Ele desde sempre indagador corria atrás da vida que sobreviver é o maior dos questionamentos.

Eram tempos de fartura, do tal de plano Cruzado, onde o país parecia se encontrar.

Nos intervalos se amavam.

Se amavam e se digladiavam como adversários que respeitosamente se estudam.

Se amavam como bichos que escutam a voz do universo e suam pelos poros, pela alma, pela calma das horas de amor.

O tempo corria e eles se conheciam.

Ela doce como as frutas já no ponto não se encantou pela promessa do caçador de Marajás.
Ele em tudo trabalhador viu no bom moço uma alternativa mais viável ao sapo barbudo sem terno.

Ela doce como nunca quase o largou.
Ele sedutor como nunca a conquistou.

Se amaram na perplexidade de uma inflação sem controle. 
  Se amaram na posse. 

Literalmente se foderam juntos no confisco.

Ela doce como a surpresa da vida, nada tinha para ofertar.
Ele ligeiro para resolver que sempre tem os que saem das agruras sabendo que jeito tomar.

Os anos passaram. 
Novos embates.

Ela doce como sempre apontando descaminhos.
Ele rápido como nunca vivendo de pragmatismos.

Ela toda sonhos.
Ele todo realidades.
Se amando.
Como nunca.
Como sempre.

Ela doce como gota de orvalho empunhava bandeiras em comícios.
Ele todo responsabilidades acumulava metas a cumprir.

Eles mais do que nunca se conhecendo.
Mais do que nunca diferentes.
Mais do que sempre iguais.

Rodopiavam em doidas danças eróticas.
Trocavam cumplicidades das coisas que a vida cobra.
Se ajudaram a sobreviver, cada qual do seu modo.

Ela doce como toda menina bem nascida foi perdendo viços.
Ele todo buscador foi ficando grisalho.

Dos encantos e ardores da juventude mantiveram o brilho no olhar.
E os ardores da paixão.

Ela doce como pitéu mantinha olhares de promessas.
Ele ansioso como cavalo no cio montava com maestria.

E se amavam.
A vida corria.
A morte acontecia.
Os hospitais.
As doenças.
E ele se amando.
Às maravilhas.

Passavam as copas.
Os planos e as vacas gordas.
Eles trabalhando como nunca.
E se amando.

Vieram as tecnologias.
Os aparelhos que os conectavam ao mundo.
E eles se descobrindo.
E brigando.
E debatendo.
E trocando risadas.
E se olhando nos olhos.

Ela doce como toda petralha.
Ele ardente como todo coxinha.

As tensões das eleições eram resolvidas com maravilhosas ereções.

O clima de ódio pairando sobre o amor.
A tensão crescendo entre eles.

Ela doce e apavorada nas redes sociais.
Ele questionador e pacificador nas manifestações de gente de bem.

Ela mil discursos já não tão certeiros.
Ele ouvidos mais inteiros.

Eles tão diferentes.

Ela doce como as utopias.
Ele duro como as existências.

Eles passando por cima de diferenças.
E continuando a se amar porque acima de tudo, o amor é um ato político de vida.

E nada mais doce e questionador que o tesão que se descobre eterno.

Ela doce e acolhedora como toda fruta madura.
Ele querido e terno como todo homem apaixonado.

Eles fazendo seu pacto de coexistir apesar de.
E se amando mais que nunca.
Desde sempre.

Que venha o amanhã.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

amantes eternos (divagações com a IA)

Das podas necessárias

Dos meus pertences