Olhos treinados em acender vontades

e não saberemos dizer qual foi o instante em que cessaram riso, abraço, murmúrio ou o toque das nossas mãos entre as cobertas felpudas, ou os códigos trocados por nossos olhos treinados em acender vontades - Cinthia Kriemler
Pode me chamar de demônia. Odeio ser contida.

Quem sou? Um pouco de você, um pouco da minha mãe, das avós que me antecederam, das amigas. Um pouco até das inimigas. Um caldo de gemidos, vontades esmagadas, sonhos a posteriori, cuidados com a prole.

Tenho olhos treinados em acender vontades como diz a amiga de ginásio. Não apenas de machos fogosos ou que tentam ser. Sou luzeiro de quem perdeu vontade, sou aquela que esquece de si para cuidar dos outros. A que posterga. A que adia. A que se deixa morrer. 

E a demônia? Onde vive a bicha ruim que me habita? Espreita sorrateira em qualquer desvio. Um suspiro derramado. Uma risada mais cínica. Um lampejo de desejo solto no ar.

Leio. Leio menos que devia, mas ainda assim leio. Leio mulheres que gritam. E em quase todas uma mala escondida em algum canto para uma fuga que nunca farão, mas sonham.

Talvez o segredo seja manter sempre essa mala como rota de emergência. Se a coisa enfeiar, se a gente não aguentar. Se a loucura ganhar. Ali estará a mala.

Dentro de mim, dentro de ti, dentro da mulher anônima que passa na rua, mora a Outra. A Lilith ancestral, a que não pode ser contida. A que não pensa nos outros, a que não é mãe. A que nunca pariu,  nunca embalou, nunca serviu.

A que se deixa ganir em noite de lua cheia. A que responde na cara, sem culpa. A que pega a mala e vai.


Fecha portas. Se lixa para os deveres. Os deverias. Os renegarias. Os parecias. 

A Lilith um dia me habitou com força. Os anos a domaram. Hoje mal a reconheço. Acho que um pedaço dela ainda pode ser acordado. Apenas acho.

Não foram só as rugas, a pele mais caída e o ar de senhora que me mudaram. Foi apenas e só acender vontades alheias e descuidar das minhas. 

A fogueira virou brasa. E nem a força de soprar para reacender a chama tenho mais...



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