Terceirizar o cuidado, mas não o afeto



Vivemos tempos estranhos. Somos criados para ter valor e propósito em uma sociedade que nos premia pelo que produzimos. Mas que também nos cobra quando nos julga inúteis para o sistema. O que fazer com os velhos que estão lentos demais, caros demais, dão trabalho demais? Coloca-los em nichos de vitalidade onde vão consumir no que se chama de economia prateada. E/ou terceirizar o cuidado dos que exigem mais atenção.

O senão de tudo isso é que vamos dando uma lição amarga para as crianças e jovens: o ensinamento de que ficar velho é ruim. Que depender de cuidados é vergonha. E com isso há uma hiper valorização de uma juventude de aparência e adultos que têm pavor do futuro. O que vemos são muitas pessoas que crescem com competência profissional, mas emocionalmente despreparadas para lidar com fragilidade. E quando a velhice chega, tanto a deles como a dos outros, muitas pessoas acabam fugindo, não por maldade, mas porque não sabem lidar com o cuidado do que não produz. As pessoas racionalizam e tercerizam, correndo das responsabilidades afetivas.

E aqui cabe um parentese: o cuidado com alguém que não está plenamente capacitado para cuidar de si é cansativo, exige tempo e, muitas vezes, um conhecimento que não se tem. Dar banho, servir comida, garantir remédio no horário, tudo isso é importante, sim. Mas cuidado nunca foi só técnica. Cuidado é relação. É presença. É pertencimento. Podemos terceirizar o cuidado, mas não o afeto.

O problema é que nossa sociedade desaprendeu a sustentar a dependência. A gente vive obcecado com produtividade, autonomia, eficiência. Nesse cenário, as pessoas idosas viram territórios incômodos, gente que exige tempo, paciência, presença, e não rende nada em troca. “Não posso abrir mão da minha vida para cuidar de” …..Quantas vezes já não se ouviu e/ou disse essa frase para justificar

Sei muito bem o que falo porque escutei muitos elogios pelos cuidados que tive com meus pais. Foram vinte anos de convivência com doenças, fragilidades, ambulâncias correndo a mil para chegar a tempo. Administração de cuidadores, de tempos, da vida finaceira e emocional deles. Vinte anos em que tirei dois períodos que talvez possa chamar de férias. Não mais que 10 dias. Noites mal dormidas. Deixando de fazer muitas coisas que chamam de vida. Foi um sacrifício? Não. Valeu cada minuto. Mas sei também que venho de uma estrutura familiar e financeira que me permitiu este cuidado. Minha vida profssional foi afetada? Com certeza, mas também consegui conciliar um conhecimento que procuro transmitir hoje em dia. Mas vamos ser bem honestos: terceirizar o cuidado muitas vezes é necessário. Famílias menores, jornadas exaustivas, cidades hostis, população envelhecendo rápido. Não é falta de amor, é falta de estrutura.

Além disso, a ciência mostra que cuidador familiar sem apoio adoece. Burnout não é frescura, é falha sistêmica. Aquele modelo antigo de família cuida de tudo, que pode ser lido por mulheres cuidam de tudo, sozinhas, em silêncio, está entrando em colpaso. As pesquisas mostram que não existe modelo perfeito: cuidar em casa preserva memória e identidade, mas pode isolar. Instituições dão segurança e socialização, mas cobram adaptação. Centros-dia parecem ser uma boa síntese: estímulo, convívio e manutenção dos vínculos familiares.

O erro começa quando a gente confunde terceirizar tarefas com terceirizar vínculos. Delegar o banho não deveria significar delegar a conversa. Compartilhar a vigilância não pode significar abrir mão da escuta. O risco não tá na presença de profissionais, está na ausência simbólica da família, que visita menos, escuta menos, se implica menos, aliviada porque enfim está tudo resolvido.

É aí que mora o perigo: em terceirizar o que não tem preço nem pode ser medido, o afeto! Quando isso acontece, a pessoa idosadeixa de ser uma pessoa e vira um problema administrado. Está limpo, alimentado, medicado. Logo está bem cuidado. Mas bem-estar só biológico é um tipo de abandono elegante. O corpo tá cuidado;a pessoa em sua totalidade, não.

E sabe o pior? Isso educa. Crianças observam. Quando eu era pequena, se contava uma fábula onde o avô velhinho já não podia comer bem e o seu filho o alimentava longe da mesa com uma tigelinha de madeira para não quebrar. Quando o avô morreu, o pai jogou fora a tijela. E o netinho foi mais que correndo buscar e guardar. Ao olhar interrogador do pai, replicou: é para ti. Quando tu ficar velhinho….

A recente Política Nacional de Cuidados aponta um deslocamento importante: o reconhecimento de que o cuidado não é apenas responsabilidade privada. Ele é social, econômico, urbano, político. Cuidar exige redes, planejamento, profissionalização. Exige arquitetura que acolha, cidades que desacelerem, políticas que protejam quem cuida e quem é cuidado.

Ou seja, uma sociedade que trata velhos como descartáveis ensina, sem precisar falar, que amor tem prazo de validade e que seu valor expira quando você deixa de ser útil. O resultado? Adultos ansiosos, defensivos, mal preparados pra própria fragilidade e pra fragilidade do outro. Relações descartáveis, assim como as fases da vida que exigem mais do que oferecem.

Podemos e, às vezes, temos que terceirizar o que é técnico, braçal, exaustivo. Isso faz parte de nossas realidades de vida. Mas contudo há algo que não dá para esquecer nem relegar: O afeto não é delegável. A escuta não se contrata. O pertencimento não se agenda. A presença não se terceiriza.

Talvez a maturidade de uma sociedade não se meça pelo que ela produz, mas pela disposição de ficar junto quando não há mais produção para justificar o vínculo. No fim das contas, o gesto mais radical hoje talvez seja simples e difícil: continuar olhando, escutando e se implicando com quem já não é funcional.

Isso educa crianças. Sustenta adultos. Devolve à velhice o que nunca deveria ter sido tirado: lugar simbólico, dignidade relacional.Terceirizar o cuidado pode ser responsabilidade. Terceirizar o afeto, nunca. Talvez a maturidade de uma sociedade não se meça pela sua capacidade de produzir, mas pela sua disposição de permanecer junto quando a produção deixa de ser possível. Cuidar, no fim, é isso: sustentar a presença quando já não há desempenho para justificar o vínculo

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