Os choques
Enquanto iam para casa, ela notou que seu pai, cuja mão segurava, caminhava de passos trôpegos, o paralelepido da rua na então quase deserta praia de Xangri-la no litoral gaúcho, machucava seus pés. Ela era a filha caçula, devia ter uns cinco ou seis anos. Era um dia ventoso. Novembro. A sua família tinha ido passar o aniversário de casamento de seus pais na praia. A pequena casa de madeira mal dava para abrigar tanta gente.
Lembra que sua mãe tinha feito um maiô diferente para ela. Naquela época se faziam essas coisas em casa. O mundo não era nem tecnológico, nem era tão fácil adquirir coisas. Havia muitas lojas de tecidos e costureiras. As roupas mais finas, os vestidos de baile de sua irmã, eram às vezes feitos por essas modistas que eram famosas na cidade onde moravam. Mas muitos eram feitos pela sua mãe. Quando perguntavam sobre a sua profissão, ela dizia doméstica com alguma vergonha. Nunca tinham deixado que trabalhasse fora. Não era de bom tom que jovens, que não precisassem, trabalhassem fora de casa. O termo doméstica equivalia a quase não fazer nada. Mas como assim? Sua mãe trabalhava e muito. Deixava a casa bonita, fazia quitutes, fazia tricô e costurava! Nas festas de família lembra de suas olheiras profundas que constrastavam com sua maneira gaiata e galhofeira de ser.
Nesse dia, lá na praia, lembra que foram para a beira do mar. Mas sem cadeiras nem guarda sol. A longa faixa de areia estava deserta porque não era época de veraneio. Sua irmã e mãe não quiseram ficar porque o vento era terrível, Zunia na alma e machucava as pernas. Estava frio. Seu pai e seu tio, irmão de sua mãe, apostaram uma corrida. Cheval, dizia o tio bonitão! Devem ter aquecido o corpo porque entraram na água do mar gelado. Ela, que tinha ficado, nem sabia porque, olhava a cena. Seu tio apenas molhou as pernas e saiu correndo para a casa. Seu pai não. Entrou afoito no mar.
Ela viu quando ele saiu e se deitou na areia. E logo em seguida, vendo que ela o olhava com medo, ele se levantou, deu-lhe a mão e disse de forma estranha: me leva para casa.
Ela levar para casa? Como assim? Era função de seu pai cuidar dela. Mas enquanto iam caminhando, de mãos dadas, ela olhava e via que os olhos do seu pai, sempre tão vivos, pareciam não enxergar nada. Vizinhos deram bom dia e a voz de seu pai saiu tão diferente. Pastosa. Meio enrolada. Ela se assustou. E mais ainda quando viu sua família correr da casa para a rua.
O dia correu cheio de aflições. Não lembra detalhes. Mas sabe que veio um médico e que este disse que seu pai se salvara de um choque térmico por ter se levantado e caminhado. Ela sabia que ele tinha feito isso por causa dela. Tinha apenas cinco ou seis anos mas se revestiu de uma seriedade de cuidados e responsabilidades. Seu pai nunca mais entrou no mar gelado do sul. Levou anos para entrar novamente no mar.
Seus pais comemoraram muitos aniversários de casamento. E foi só muitos e longos anos mais tarde que ela, já bem mais velha, voltou a enfrentar o mesmo susto quando, em uma ambulância estridente, acompanhou seu pai, que tivera um choque hipovolêmico, em direção ao hospital. Nunca vai esquecer estes momentos. Os olhos vivos de seu pai nunca mais foram os mesmos. E ela nunca mais deixou os cuidados e responsabilidades que, de alguma forma, antecipou na infância.
Elenara, tuas história sempre excelentes e instigantes!
ResponderExcluirÉ incrível como determinados acontecimentos marcam posturas na vida toda!
Beijos e siga nos encantando!
Obrigada Rita! Estamos escrevendo as memórias entre os irmãos. Incrível como as lembranças revelam nossas trajetórias. Beijos
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