Quem Fala por Mim?

Imagem gerada em IA

Pequena fábula em forma de crônica baseada em fatos ouvidos e narrados por pessoas que viveram.


Dona Clara tinha 77 anos. Era daquelas mulheres que mantinha-se firme, lúcida e ativa. Acordava cedo, lia o jornal todo, e adorava um bom debate sobre os rumos da política e da ciência. Se havia algo que nunca lhe faltara, era a clareza de pensamento e a vontade de viver a vida plenamente.

Casada com o João, um homem 20 anos mais novo, Clara se divertia com a diferença de idade. Ele, aos 57, vibrante e carismático e ela que, com sua calma e sabedoria, equilibrava a casa. Tinham uma vida feliz, ainda que cheia das piadas maldosas que escutavam sobre a diferença de idade. “Ele é quem cuida de você, não é?”, diziam uns. Clara apenas sorria, paciente, mas lá dentro, revirava os olhos.

Certa vez, começou a sentir algumas dores no joelho. Algo pequeno, uma pontada ao caminhar. “Ah, coisa da idade”, pensou, mas mesmo assim resolveu ir ao médico. Chamou João para acompanhá-la, só para não ficar sozinha.

No consultório, Clara se sentou à frente do médico, preparada para explicar o que sentia. O médico olhou para ela por um breve segundo e, sem hesitar, voltou-se para João:

— Então, o que ela está sentindo?

Clara piscou, surpresa. Tentou começar a falar, mas o médico parecia muito mais interessado no que João tinha a dizer sobre as suas dores. Como se, de repente, ela não fosse capaz de falar por si mesma. João, confuso, tentou desconversar, mas o médico continuava direcionando as perguntas a ele.

Saíram do consultório, Clara com uma receita nas mãos e uma raiva silenciosa no peito. “Eu estou aqui”, pensava, “eu tenho voz, sou eu quem sinto as dores.”

Semanas depois, foi a outro médico, desta vez acompanhada de sua filha, Fernanda, que tinha 45 anos. Talvez, pensou, fosse só um caso isolado. Mas não. Logo que entraram no consultório, a história se repetiu. O médico ignorou Clara quase por completo e se dirigiu à filha:

— Ela está com esses sintomas há quanto tempo?

Clara respirou fundo. Era como se o médico acreditasse que, por ela ter 77 anos, não era mais capaz de entender o próprio corpo. Como se a idade a transformasse em uma figura invisível, sem autonomia. Os olhos do médico mal pousavam sobre ela; todo o diagnóstico e tratamento eram dirigidos à filha, que respondia apenas com gestos de desconforto, ciente do absurdo da situação.

Ao saírem, Fernanda tentou amenizar:

— Mãe, ele estava só tentando ajudar.

Clara sorriu, mas a verdade é que aquele padrão repetido lhe causava algo que ia além de um simples aborrecimento. Aquela atitude doía de um jeito que não era físico, era uma espécie de exclusão emocional. Um preconceito disfarçado de zelo. Como se, ao envelhecer, tivesse perdido a voz, a capacidade de ser protagonista da própria saúde, como se sua lucidez não fosse mais levada a sério.

Aquilo a fazia questionar quantas outras pessoas, como ela, estavam sendo reduzidas a meros coadjuvantes de suas vidas. Tratadas como incapazes apenas por causa de uma contagem de anos que não refletia o que se passava em suas mentes e corações. Era o idadismo se insinuando de maneira silenciosa, mas perigosa. Porque não eram apenas as perguntas direcionadas ao marido ou à filha. Era a insinuação de que, com o tempo, deixamos de ser quem somos e passamos a ser o que os outros veem em nós: frágeis, confusos, dependentes.

Mas Clara não era nenhuma dessas coisas. Ela ainda era ela mesma. A mulher que resolveu problemas a vida inteira, que criou filhos, netos, que ainda lia e pensava com clareza. Não merecia ser tratada como se já estivesse ausente.

Em casa, refletindo sobre aquilo, decidiu que, da próxima vez, não deixaria passar. Quando fosse ao médico, falaria por si, exigiria ser ouvida. Afinal, a idade não tira de ninguém o direito de ser tratado com dignidade, com respeito. Dona Clara sabia que ainda tinha muito a dizer. E, acima de tudo, sabia que merecia ser ouvida.

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