Os heróis de carne e osso são criaturas complexas
Varian Fry |
Se tenho algum arrependimento sobre o trabalho que fizemos, é que foi tão leve. Ao todo, salvamos cerca de dois mil seres humanos. Deveríamos ter economizado muitas vezes esse número. Mas fizemos o que pudemos. E quando falhamos, muitas vezes foi por causa da incompreensão do governo dos Estados Unidos. Somente em 1944 o presidente criou o Conselho de Refugiados de Guerra, para fazer em grande estilo e com apoio oficial o que tentamos fazer em nosso pequeno caminho, contra a constante oposição oficial. Mas então já era tarde demais. Varian Fry
Junto a ele se formou uma equipe como a pintora Miriam Davenport e a socialite Mary Jayne Gold que bancava muitas das fugas com seu rico fundo fiduciário. Os três eram americanos e isso significava uma proteção adicional em um país ocupado pela Alemanha Nazista. Embora o sul da França, e Marselha onde se passa a série, fosse teoricamente ainda uma zona livre, na realidade era alinhada ao Reich. Os perigos que os adversários ao regime nazista enfrentavam eram reais, embora ainda houvesse uma zona de manobra. Através dela foram salvos alguns dos mais brilhantes artistas europeus da época.
Mary Jayne Gold |
Como todo regime autoritário, a arte era vista como tendo que se enquadrar na estética do partido e da ideologia nazista. A liberdade artística é sempre uma ameaça aos ditadores e a quem quer traçar as linhas da moralidade, costumes e usos de uma sociedade. A liberdade, nome muito usado mas pouco praticado, é sempre revolucionária na mente de quem não tem amarras.
Tanto Fry como os demais personagens da série sofreram liberdades artísticas em suas trajetórias. Faz parte das adaptações de roteiros. O economista Albert Hirscham também aparece como um dos protagonistas. Seus esforços, sua luta contra não apenas o terror ainda velado do regime de Hitler, a luta contra a burocracia e a reserva por parte dos governos em conceder vistos e entrada para os judeus acossados que precisavam sair da Europa são mostrados de forma sutil. Mas as mazelas da guerra, especialmente a que é travada na vida cotidiana, são bem mais complexas que as vividas na ficção. O que fez daquelas pessoas heróis de um tempo? Sua coragem de arriscar tudo para salvar pessoas que muitas vezes nem conheciam? Salvar seu mundo que ruía em novos valores de desumanidade que muitas faziam vista grossa ao não querer enxergar? Se a indignação que mostraram fosse mais geral, o estado alemão teria tido a coragem de chegar à solução final, o holocausto?
Ao reunir artistas em uma mansão na região, a Villa Air Bel, Fry e amigos conseguiram salvar milhares de pessoas. Poderiam ter salvo mais? Talvez. Mas fizeram o que podiam. Quantos de nós, na mesma situação, fariam o mesmo? Hiram Bingham IV é um desses exemplos de funcionários públicos que foram corajosos em seus cargos. Consul americano em Marselha não compactuou com a inércia do consulado em fornecer vistos aos refugiados e foi por isso punido. Mas fez.
Grupos de artistas em Air Bel 1940 |
As raízes de uma planta em um vaso muito pequeno acabarão por estourar o vaso. Transplante-o para um vaso maior e ele logo o encherá. Mas se você transplantá-lo para um vaso grande demais, ele “criará raízes”, como dizem os jardineiros, e pode até morrer com o choque. Fui transplantado, 13 meses atrás, para um pote que mais de uma vez tive medo de ser muito grande; mas eu não morri; no final, acho que quase o preenchi - não totalmente, mas quase. Pelo menos não morri de choque ou de sensação de inadequação. Varian Fry
O que difere pessoas comuns de heróis? Quase nada. Pessoas consideradas corajosas e heroínas são pessoas de carne e osso, com suas complexidade e defeitos, como todos nós. Mas na hora de optar se aceitam ações de desumanidade, dizem não. E agem. Da maneira que podem. O que não se pode admitir é viver com uma sensação de ter permitido que iniquidades da pior espécie aconteçam ao nosso redor com a desculpa cômoda de que não podemos fazer nada.
“Os heróis de carne e osso são criaturas complexas”, Mary Jayne Gold
Excelente reflexão Elenara. Que saibamos interpretar os alarmes que soam ao nosso redor, hoje e sempre
ResponderExcluirExatamente. Devemos ficar sempre atentos ao fascismo e à barbárie para não acharmos normal o que não é.
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