Os heróis de carne e osso são criaturas complexas


Terminei de ver a série Transatlântico que trata do resgate de intelectuais alemães que viviam na França ocupada em 1940. Não conhecia a história e como sempre faço em qualquer filme ou série histórica, vou pesquisar. Minha técnica de aprender história. Entre a versão apresentada, que passa por adaptações de enredo, condensação de fatos e liberdades poéticas e artísticas, existe a realidade que também é complexa e passa por várias versões. Por isso gosto de ir atrás de dados e fatos.

Resumindo sem spoilers (o único é que o nazismo foi derrotado, na época...) a série mostra o trabalho do Comitê de Resgate de Emergência chefiado por um jornalista e intelectual americano chamado Varian Fry

Varian Fry

Durante os 13 meses de Fry em Marselha, ele conseguiu resgatar 2.000 pessoas, incluindo uma lista escolhida a dedo das estrelas mais brilhantes da cultura europeia — Hannah Arendt, Marcel Duchamp, Marc Chagall, Max Ernst, Claude Lévi-Strauss e André Breton, para citar alguns. Até recentemente, eu nunca tinha ouvido falar de Fry, embora seja indiscutivelmente por causa dele - e por causa de seus colegas igualmente corajosos, incluindo vários outros americanos não judeus - que esses artistas e intelectuais não apenas sobreviveram, mas remodelaram a cultura da América. (fonte)
   
Interessante como a série mostra os interesses, por vezes escusos ou talvez pragmáticos, por trás da ainda neutralidade americana na segunda grande guerra. Havia um interesse em importar mentes brilhantes nos campos das artes, assim como aconteceu com cientistas que participaram dos projetos de bombas atômicas e corrida espacial, mas não em abrigar pessoas mais comuns, também perseguidas pela então semi disfarçada barbárie nazista. Semi disfarçada porque os sinais eram vistos, mas não enxergados. Varian Fry fala sobre o que sentiu, quando jornalista em Berlim e como uma cena o revoltou em um bar, e ele sentiu que algo precisava ser feito. Não que fosse um herói em potencial. Mas porque era movido por uma legítima indignação humana.   

Se tenho algum arrependimento sobre o trabalho que fizemos, é que foi tão leve. Ao todo, salvamos cerca de dois mil seres humanos. Deveríamos ter economizado muitas vezes esse número. Mas fizemos o que pudemos. E quando falhamos, muitas vezes foi por causa da incompreensão do governo dos Estados Unidos. Somente em 1944 o presidente criou o Conselho de Refugiados de Guerra, para fazer em grande estilo e com apoio oficial o que tentamos fazer em nosso pequeno caminho, contra a constante oposição oficial. Mas então já era tarde demais. Varian Fry

Junto a ele se formou uma equipe como a pintora Miriam Davenport  e a socialite Mary Jayne Gold que bancava muitas das fugas com seu rico fundo fiduciário. Os três eram americanos e isso significava uma proteção adicional em um país ocupado pela Alemanha Nazista. Embora o sul da França, e Marselha onde se passa a série, fosse teoricamente ainda uma zona livre, na realidade era alinhada ao Reich. Os perigos que os adversários ao regime nazista enfrentavam eram reais, embora ainda houvesse uma zona de manobra. Através dela foram salvos alguns dos mais brilhantes artistas europeus da época. 

Mary Jayne Gold

Como todo regime autoritário, a arte era vista como tendo que se enquadrar na estética do partido e da ideologia nazista. A liberdade artística é sempre uma ameaça aos ditadores e a quem quer traçar as linhas da moralidade, costumes e usos de uma sociedade. A liberdade, nome muito usado mas pouco praticado, é sempre revolucionária na mente de quem não tem amarras.

Tanto Fry como os demais personagens da série sofreram liberdades artísticas em suas trajetórias. Faz parte das adaptações de roteiros. O economista Albert Hirscham também aparece como um dos protagonistas. Seus esforços, sua luta contra não apenas o terror ainda velado do regime de Hitler, a luta contra a burocracia e a reserva por parte dos governos em conceder vistos e entrada para os judeus acossados que precisavam sair da Europa são mostrados de forma sutil. Mas as mazelas da guerra, especialmente a que é travada na vida cotidiana, são bem mais complexas que as vividas na ficção.  O que fez daquelas pessoas heróis de um tempo? Sua coragem de arriscar tudo para salvar pessoas que muitas vezes nem conheciam? Salvar seu mundo que ruía em novos valores de desumanidade que muitas faziam vista grossa ao não querer enxergar? Se a indignação que mostraram fosse mais geral, o estado alemão teria tido a coragem de chegar à solução final, o holocausto? 

Ao reunir artistas em uma mansão na região, a Villa Air Bel, Fry e amigos conseguiram salvar milhares de pessoas. Poderiam ter salvo mais? Talvez. Mas fizeram o que podiam. Quantos de nós, na mesma situação, fariam o mesmo? Hiram Bingham IV é um desses exemplos de funcionários públicos que foram corajosos em seus cargos. Consul americano em Marselha não compactuou com a inércia do consulado em fornecer vistos aos refugiados e foi por isso punido. Mas fez. 

Grupos de artistas em Air Bel 1940

Quando finalmente foi impedido legalmente de fazer mais resgates e salvamentos, Fry desabafou em uma carta à sua esposa:      

As raízes de uma planta em um vaso muito pequeno acabarão por estourar o vaso. Transplante-o para um vaso maior e ele logo o encherá. Mas se você transplantá-lo para um vaso grande demais, ele “criará raízes”, como dizem os jardineiros, e pode até morrer com o choque. Fui transplantado, 13 meses atrás, para um pote que mais de uma vez tive medo de ser muito grande; mas eu não morri; no final, acho que quase o preenchi - não totalmente, mas quase. Pelo menos não morri de choque ou de sensação de inadequação. Varian Fry

O que difere pessoas comuns de heróis? Quase nada. Pessoas consideradas corajosas e heroínas são pessoas de carne e osso, com suas complexidade e defeitos, como todos nós. Mas na hora de optar se aceitam ações de desumanidade, dizem não. E agem. Da maneira que podem. O que não se pode admitir é viver com uma sensação de ter permitido que iniquidades da pior espécie aconteçam ao nosso redor com a desculpa cômoda de que não podemos fazer nada. 

“Os heróis de carne e osso são criaturas complexas”, Mary Jayne Gold

Comentários

  1. Excelente reflexão Elenara. Que saibamos interpretar os alarmes que soam ao nosso redor, hoje e sempre

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Exatamente. Devemos ficar sempre atentos ao fascismo e à barbárie para não acharmos normal o que não é.

      Excluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

amantes eternos (divagações com a IA)

Das podas necessárias

Dos meus pertences