Faz de conta que há liberdade de pensamento


14 de julho, dia da liberdade de pensamento. Ou seja, de acordo com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, no seu artigo XVIII, "todas as pessoas têm direito à liberdade de pensamento, consciência e religião". 

Pessoas morreram e morrem pela defesa de poder ter liberdade de pensar, de crer, de ser. Os revolucionários de 1879 tomaram a Bastilha e mataram o rei para bradar sua indignação. E o sangue correu solto naquilo que hoje brindamos como Liberdade, Igualdade e Fraternidade nas festas francesas. Lembro meu pai ensinando a cantar a Marselhesa com orgulho, aquele hino guerreiro que chama à luta. Ele mesmo filho do outro homem que vociferava contra as artimanhas de eleições arranjadas onde, não apenas poucos podiam votar, como muitos recebiam as cédulas prontas, com os candidatos que deviam ganhar por força da força. 

Aqui nesse país sempre se prezou pelo faz de conta: faz de conta que a gente vota, faz de conta que ditadura é democracia, faz de conta que racismo é bondade, faz de conta que patriarcado é bom para as mulheres. É tanto faz de conta que as pessoas acreditam em sua próprias lorotas.

Faz de conta que a constituição vale. Faz de conta que comprar voto é legítimo. Faz de conta que somos cristãos e faz de conta que nossa hipocrisia não fere ninguém.

Faz de conta que um dia sonhamos com um país com mais oportunidades para todos, onde as empregadas domésticas possam ir para a Disney e os porteiros para Paris sem que isso fira sensibilidades alheias. Afinal não foram bem os nobres ou a elite que correu às ruas e tomou a Bastilha em Paris. Burgueses que se tornaram a nova casta dominante e faz de conta que são todos justos e modernos, mesmo quando aspirem mesmo é viver em uma sociedade reservada para os seus direitos.

Faz de conta que uma casta política possa votar orçamentos secretos sem causar indignação porque afinal tudo o que querem é salvaguardar uma liberdade (deles) de pensar e ter. Faz de conta que faltar remédios básicos é normal ou ironizar medidas sanitárias consagradas no mundo todo seja coisa razoável só porque a emissora predileta abona e o grupo do whatsapp jure que é verdade. Faz de conta que somos normais. Faz de conta que podemos sonhar com uma mudança dentro de uma regra democrática porque nos ensinaram que a democracia ocidental funciona. Até que uma bota diga não. E como tem arma de verdade, fica difícil dizer que tudo é um faz de conta patético e a gente só queria ter direito de pensar por si mesmo, sem ser tutelado. 

Faz de conta que a gente pensa. Faz de conta que outros não decidam de forma peremptória quem tem pode gritar e quem não. Faz de conta que a poesia morreu, só que não, que essa sobrevive, apesar de vocês. 

Faz de conta que a miséria não voltou. Faz de conta que tudo melhorou. Faz de conta que você não tem um mínimo de decência. Faz de conta que você se importa um dedinho pelo próximo.

Faz de conta que se possa respirar. Escolher. Crer. Ousar. Viver....

 

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