A aliança serrada


Dor aliança  elegante elenara

A serra comia o ouro enquanto minha mãe dormia. 

Aos 96 anos, seu dedo anular na mão direita a usava desde 1943. Quase oito décadas que essa argola, gravada com as iniciais H e P, fazia parte de sua vida. Poucas vezes saiu de seu dedo. Uma vez, ainda noiva, jogada longe com furor por uma briga com seu jovem noivo.

Talvez tenha surgido ali, quando reataram, o pacto que fizeram Helena e Paulo de a usarem sempre na mão direita. Para quem não sabe há uma convenção nas argolas de compromisso. Mão direita, namoro e noivado. Mão esquerda, casamento. 

Usar a aliança é uma forma de mostrar o compromisso que fazem as pessoas. Segundo li, o uso no dedo anular vem de uma tradição ainda dos romanos. Eles acreditavam que ali passava uma veia, a amoris, que era conectada diretamente ao coração. Depois, com o avanço da ciência, se descobriu que todas as veias conduzem ao coração, mas o hábito já estava arraigado. 

Meus pais se casaram em 1944. A Segunda Guerra tinha terminado na Europa, mas ainda continuava no Pacífico. Passaram 69 anos juntos. Paulo se foi poucos meses antes da comemoração dos setenta anos, bodas de vinho. Não por acaso uma das bebidas prediletas de meu pai. Os bons vinhos ficam melhores com o passar dos anos, assim como deveria ser um relacionamento duradouro.

O dedo inchado de minha mãe pedia providências urgentes. Tentadas as opções "normais" só restava a providência mais drástica. Por sorte ela estava dormindo e não viu a sua aliança ser serrada. Imagino que mesmo com a sua memória falhando, o ato de quebrar aquele símbolo de um vínculo tão importante pudesse ser uma dor afetiva, e física, muito impactante.

A história da aliança na mão direita lembrei porque, quando chegamos para morar em Brasília, meu pai despertou olhares femininos, principalmente porque nos seus cinquenta anos, charmoso e bonito, não ostentava uma aliança de casamento. Deram um jeito de sondar minha mãe, por um funcionário. E ela revelou esse pacto de usarem o símbolo da mão esquerda porque combinaram de serem eternamente noivos. Essa história singela obviamente atraiu ainda mais olhares para meu pai, que revelava seu lado romântico, como bom pisciano que era. O que se revelava pelos poemas que fazia para minha mãe nos seis meses em que moraram separados, ele no Rio, nós em Brasília.

Imagino que símbolos sejam relevantes em nossas vidas. Por mais que seja dolorido ver dois pedaços de metal dourado partidos, eles não significam um trato rompido nem uma comunhão desfeita. São apenas reflexo de vidas longas. Meu pai aprovaria esse ato, sabendo que seu amor era maior que a vida. E a saúde de sua amada, o bem mais precioso a preservar.



Comentários

  1. Que linda história de amor e compromisso , Elenara!
    Eu tbm sou pisciano como o seu Sr. Paulo. :)

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    1. Dá para notar pelo teu modo de agir com o mundo, as filhas e a vida! Meu pai ia amar teus projetos! Abraços

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