Das ruas da minha infância


Tão grandes as ruas da minha infância! Maiores por ser eu tão pequena. Eram seguras, convidativas para um caminhar, um brincar de amarelinha.

Novo Hamburgo, uma cidade próxima à Porto Alegre, com ruas tão limpas que parecia não haver habitantes. Nossa casa, branca como as nuvens, ficava em cima de um morro. Nos verões escaldantes, faltava água. Íamos de sacolinhas, a pé, até o Clube Aliança. Piscina e o banho que, fora de casa, tomava ares de aventura.

Anos mais tarde, fui passar um carnaval em Laguna/SC, na casa de um pescador. Eu e uma turma de jovens urbanos. Além do piolho, que pegamos na noite em colchões conjuntos, também a água faltava. O jeito era pegar um barquinho, atravessar as águas e ir tentar um banho no camping local, rezando para que nos confundissem com os barraqueiros de lá. Ou comprar um no barzinho simpático, cujo banheiro tinha uma janela enorme que dava para uma mata. Tomara não tivesse ninguém ali. Bons tempos em que o celular não tinha sido inventado, nem as câmeras fotográficas eram tão comuns. O voyeurismo ficava apenas na memória de quem viu. Se é que viu.

Mais um recorte e já é Natal. O pai chega do banco, nos coloca no carro e vamos ver as vitrines da Rua da Praia. Eram anos 60. Meu irmão não curte aquela caminhada e fica dormindo no banco do carro, que fica aberto. Não só podíamos andar a noite, em passeio familiar no centro de Porto Alegre, como o carro podia ficar uma quadra distante sem trancas e com um pirralho dormindo dentro. Hoje parece inconsequência mas eram tempos tão mais inocentes. Lembro das luzes da rua, fervilhando de pessoas encantadas com os bonecos e enfeites que se mexiam. Não lembro o nome da loja, ficava na quadra antes da Massom, cada ano as vitrines se superavam. Meus olhos de criança brilhavam com aquelas magias.

Outra rua que me fascinava era uma avenida. Carlos Gomes. Meu pai tinha um aero willys azul com bancos vermelhos. Ele adorava passear de carro. Não só nos fins de semana, mas a cada anoitecer, quando chegava do trabalho, nos colocava todos no veículo e dava uma volta pela cidade. Anos mais tarde, nos confidenciava que era das coisas que mais gostava na vida. Acho que lhe dava uma sensação de liberdade, de ver coisas novas mesmo que conhecidas, ele que tinha olhos de descobertas para a vida. A Carlos Gomes era tão ampla! Parecia de um tamanho que não reconheci mais depois que morei anos em Brasília e voltei à Porto Alegre. Meus olhos adolescentes, já acostumados às esplanadas, não mais reconheciam a avenida de minha infância naquela rua agora tão acanhada. Como mudam os conceitos quando novos parâmetros surgem em nossas mentes.

No planalto central deixei o velho conhecer as ruas pelos nomes e sim pelas siglas. Minha mente lógica logo se acostumou e achou algo completamente encantador. Era muito mais fácil de entender uma cidade assim. Ao leste a L alguma coisa. Ao oeste as W (west em inglês) 1,2, 3 e assim por diante. SQS 315 passou a ser meu endereço ao invés da Rua Duque de Caxias. Algo muito mais apropriado ao século XX!

Os espaços se ampliaram, a luz era mais intensa, não mais abrigadas pelos prédios e ruas estreitas. As visões de D. Bosco olhavam um local que reunia gente de todo o Brasil e que ali, me fez sentir o tamanho real de meu pais. A geografia tomou forma e nome. Eram sotaques, experiências e vidas de todos os estados. Meu sotaque sulino extraia risadas em salas de aula. Nunca me senti tão gaúcha como quando longe de meus pagos.

As ruas que vivi se mesclam em memórias e ficção. Já não as lembro com detalhes, apenas com sentimentos.

Eram acolhedoras e seguras como casa da gente. Cada uma guarda seus nomes e referências em algum lugar dentro da lembrança. Na verdade, saudade mesmo é da infância.

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