Como era gostoso o meu francês
Como era gostoso o meu francês, pensou enquanto examinava a taça para perceber a limpidez do vinho branco. Gostava mais dos tintos encorpados, é verdade. Mas aquela noite merecia uma exceção.
Tudo tinha começado há exatos dez meses. Marcara bem aquele dia que seria tão determinante em sua vida. Diziam que momentos marcantes são assim. A gente lembra em detalhes. Tocava Nando Reis na rádio, chovia miúdo e era um dia cheio de noticias sobre a politica. Foi quando veio o telefonema da detetive Andreia. Vira o telefone no poste do supermercado e num impulso ligara, umas semanas antes.
Falar da traição, sinais, dúvidas, expor a personalidade do companheiro que trazia tanto amor, mas pecava em algumas faltas, eram pensamentos constantes em seus momentos com as amigas. Nem quis ver as fotos que a detetive jurava serem dele. Falou do carro entrando no motel, encheu de estatísticas de homens como ele traindo e eis que tomou a decisão: ele nunca mais! As amigas apoiaram com decisão.
Malas feitas, nem quis escutar o que ele falava. Duas décadas de paixão e companheirismo desceram com ele pelo elevador. Escutou os pneus cantando, coisa que fazia sempre que estava nervoso.
Duas semanas depois da liberdade ou solidão recém conquistada, começou a pandemia.
Algumas garrafas de vinho mais tarde, em meio à sessões de filmes românticos, baixou o tal aplicativo de dates. Meio insegura, colocou uma foto prosaica e foi separando fotos. Algo nela dizia que era complicado julgar por imagem, mas vai que...estranhou quando pipocaram matches. Com alguns falou, até por solidão. Uns eram casados procurando uma aventura, outros viúvos, separados, tinha até o careca que exigia o número do whats como se já tivesse algum direito sobre ela. Deu saudades do antigo se entender sem precisar falar. Assim como baixou, deletou em seguida. Essas modernidades não eram para ela.
Ficaria sozinha, não fosse uma observação da síndica sobre o vizinho esquisitão do sétimo andar. Nunca tinha prestado atenção, era o encrenqueiro das reuniões de condomínio, ninguém sabia muito bem o que fazia, uns diziam que era aposentado desde novo. Já tinha passado por três casamentos e tinha alguns filhos espalhados que sempre olhavam todos de cima.
-"Olha como o Jerônimo está bonito, fosse mais nova eu pegava...e além de tudo tão autêntico, acredita em Deus, na família, etc, etc." Parou no pegava que mulher tem dessas coisas quando está no cio, só ouve o que lhe convém. Pensando bem, até que era ajeitadinho o moço.
De conversas rápidas no saguão passaram para conversas por aplicativos. Numa noite ele tocou na sua porta, pedindo açúcar. Não saiu mais. Ela achou estranho ele estar sem máscaras, hábito tão usual nesses tempos de vírus, mas vá lá que fosse por que confiava nela. Homem é tão querido, né.
No começo até ria das "autenticidades" dele. Era grosso com os porteiros, xingava quase todos, menos os que tinham algum poder. Não era muito elegante, mas pelo menos não era o outro.
Não era o outro era a palavra mágica para desculpar o que não aguentava. Enquanto isso ouviam Roberto Carlos juntos e bebiam cerveja que ele não curtia vinho, coisa de gente fresca dizia. Preconceitos eram outros de seus defeitos.
Se dizia de bem, mas não agia como tal.
Os meses se passavam e ela não entendia as insônias, o ar cansado, a falta de vontade. Com o outro era tudo tão leve, tão cheio de frescor e alegria. Nada era pecado. Não fosse a maldita desconfiança...
Ouviu lives, fez meditação, desabafou com as amigas, olhou as janelas. A vida lá fora. Viu as pessoas saírem mais, ele insistindo para reunirem conhecidos porque essa coisa de isolamento era bobagem mesmo. Ela cada dia mais incomodada.
Hoje não. Olhou da janela e o viu abraçando as criancinhas no quintal. Sem máscaras, ria e falava alto que aquilo tudo era invenção de toda espécie de conspiração que se pudesse pensar existir.
Ela mesma começou a rir, se sentindo mais leve. Com redobrada energia jogou as coisas dele em sacos de lixo, colocou a máscara e desceu as escadas em pulos, deixando tudo na porta dele, no sétimo andar.
Voltou aos galopes para casa. Roberto Carlos cantava cavalgada, ela toda achada. Achou o último vinho que sobrara em casa. Um francês branco. Fez um risoto silencioso, arrumou a mesa com requinte, colocou castiçais e tirou a taça mais bela para homenagear sua conquista: a de ser feliz sem pesar consequências.
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