meu pai descascava laranja em gomos

pixabay S. Hermann  F. Richter

Meu pai descascava laranjas como se fossem bergamotas. 

Parece que vejo suas mãos de dedos longos, unhas nem sempre rentes, rasgando a casca grossa e transformando a fruta em uma nudez delicada. Tirava ainda todos os pedacinhos brancos e me dava, gomo por gomo. Tinha um sabor que nenhuma outra laranja conseguiu ter. Não tenho essa paciência. Aliás detesto até descascar bergamotas. Embora adore come-las. 

Aqui em casa sempre fomos gentis uns com os outros. O maior desaforo não era dado com palavras ásperas. Nunca! Era um ir na cozinha e voltar sem um copo de água também para o outro. Se nem perguntasse então, era caso de declaração de guerra. Sempre burilamos a gentileza como hábito diário.

Bom dia, obrigada, por favor ou o por obséquio de meu pai, eram termos obrigatórios e correntes do vocabulário. Delicadeza era prato feito, hábito cotidiano tão arraigado que acho que já nascemos sorrindo e agradecendo à parteira. 

Acordava cedo pela manhã, meu pai fazia o café antes do trabalho. Minha merenda era um pão com geleia, com fatias grossas e um suco, acho que limonada, que ia na merendeira cor de rosa. O uniforme branco com um imenso laço azul, tapapó como chamava minha mãe, combinava com a conga e a japona azul. Antes de sair meu pai tomava a tabuada. Outro de seus hábitos de vida. Acho que tinha uma missão de ensinar a garotada a decorar os números. Desculpa, pai, nunca aprendi. Sempre fui a filha que não era perfeccionista, a única a seguir uma carreira de exatas. A única que não decorou a tabuada. Só até a do cinco. O que me salvou foram os dedos, a dica de colocar os números em ordem e na tabela ao lado, em ordem inversa! E eis a dos nove! Minha sorte foi terem inventado as calculadoras. Aprendi integral, pai, mas não decorei a tabuada.

Outra lembrança eram os pães. Meu pai os cortava meio enviesados, bem fininhos. Passava manteiga ou a recém descoberta margarina, que ainda era vendida como a suprema descoberta para a saúde, bem espalhada. Cada época com as suas certezas e os seus interesses comerciais. Ainda bem que os hábitos de poupar do meu pai, menino de infância pobre, nos livraram de mais problemas com o uso da gordura vegetal. Aquela faca ia espalhando e raspando, até que sobrasse pouco mais que um cheiro da cobertura. Por cima, ele pegava um fio de salame italiano, também cortado bem delgado. Não contente, rasgava ainda em mil pedaços e aquela fatia crescia de tal maneira que acho que daria para todo o pão francês. A faca que espalhara a margarina com maestria, agora pincelava os pedacinhos esgarçados do salamito. E ainda os amassava sobre o pão, fixando com força e ternura. Só então, depois de toda essa alquimia, passava a fatia para mim. Meu olhar fascinado se unia à sensação de sentir os pedacinhos sendo mastigados dentro da boca, um sabor inigualável. Nenhum mestre cuca de nenhum restaurante estrelado poderia fazer uma especiaria tão boa como as fatias de pão do meu pai e a sopa de feijão com ovo de minha mãe. 

As lembranças de saudades do pai que se foi há anos e da mãe que se vai devagar se mesclam. A dor da falta vai dando lugar à ternura da lembrança. À memória dos momentos que se fixaram em mim, tal qual gomos de uma laranja que vão sendo revelados por quem os sabe descascar de forma criativa e única.     

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