A surtada nossa de cada dia


Mais de 100 dias presa em casa. Três saídas esporádicas e tensas. Quem não surtou no meio da pandemia não a viveu com intensidade.

O emocional da gente é bicho esquisito. O meu é. E como dizia La Lispector eu quero o é da coisa.  

A coisa me persegue desde sempre e talvez por isso eu tenha sido a guria estranha da casa. Gostava de pensar demais. Ficar sozinha demais. Observar demais. E viver de menos.

Que o equilíbrio sempre peca em algo.

Impossível dizer que vou passar mais de 100 dias ou 1000 no risco iminente de um bichinho invisível me pegar de vez, me levar dessa vida em meio ao sofrimento da falta de ar e da falta das pessoas amadas a minha volta, sem mudar algo em mim.

Penso mais. Observo mais. Fico obviamente mais sozinha.

Já se disse que as pessoas se revelam nas emergências. Quais os seus valores. Quais as suas prioridades. Para quem seus pensamentos e seus atos.

Muitos dos que morreram no 11 de setembro, os que sabiam que iam morrer, ligaram para seus amados para dizer que os amavam.

Quantos de nós fizemos e fazemos isso? 

Reflexões de um fim de semana onde li e vi muitas coisas ligadas à finitude. Onde a morte representada se fundiu às mortes e saudades reais e onde os ciscos dos olhos foram companhia constante. 

A solidão também. Não a gostosa, do prazer de estar consigo. Aquela outra, a dura, da certeza da falta da mão e ombro amado para só descansar e reconhecer que o mundo é líquido e que a vida é tênue. Mas mesmo assim vale a pena.

Hoje falo com uma amiga sobre isso. Ela me acalma o coração. Antes surtei.

Surtar de tremer o corpo e exasperar quem estivesse por perto. Assustada com a fúria do que o surto seria capaz de agir em mim. Culpada desde sempre pela raiva tantas vezes reprimida. Quase santa de tanta erupção acalmada a base de muita resiliência pessoal. 

Como tudo no universo é interligado e como venho agindo em pequenos passos para me abrir ao mundo e deixar de procrastinar tanto e agir mais, tenho recebido sinais em sonhos e na vida.

O sonho com um ex que já morreu me lembra do sentimento que tive na época em que estava amando. Caminhava na rua e sem mais nem menos, tudo parou de ser pergunta. Tudo tinha a mesma ressonância, as pessoas, eu, os carros, as árvores, o ar. Senti o coração do universo batendo e eu batia no mesmo ritmo. 

Muitas vezes fui chamada de louca ao relatar esse ínfimo momento que recordo com intensidade até hoje. Não estava meditando, não estava fazendo nada de especial. Apenas por um segundo, vivi intensamente o momento presente. Maestria talvez tenha a ver com isso também.

Hoje recebo um email da monja Coen com uma reflexão: "  quais aspectos de sua vida precisam morrer para que possa seguir em frente, a caminho da paz interior". Talvez meu surto tenha também um gatilho de aviso do que me incomoda, do que me trava, do que preciso desapegar e deixar ir.

Vá lá se saber que caminhos a vida nos leva. O importante é que nos leve. Mesmo que para isso se quebrem as cascas que impedem o voo.

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