As fogueiras da infância
Lá fora crepitava o fogo na noite gelada de junho. Dentro de casa a animação também era calorosa. A ampla mesa da cozinha se tornava pequena frente à animação das gurias. Primas e adolescentes se esmeravam em sortilégios, os mais criativos, na ânsia de saber mais sobre seus futuros e amores.
Era década de sessenta. E lá, como aqui, as noites de festas juninas eram motivo para se falar dos amores e prováveis namorados. Ficantes era palavra absolutamente proibida e desconhecida. Pelo menos na frente dos pais e tios que a tudo assistiam sem muita atenção. Falavam de política e dos novos rumos do país com aquele presidente da vassoura. O que ia acabar enfim com a corrupção.
As mães e tias se ocupavam dos doces e comedorias. E do quentão que cheirava forte na sua mistura de álcool e canela.
Era frio. Mas nem se ligava.
Lá fora os guris, dos mais novos de olhares arregalados aos mais velhos, já de olhares moles para as meninas da casa, todos se ocupavam das festas de São João.
O páteo da casa alugada era amplo. No meio tinha um ensaibrado de quadra de esportes. Num canto da casa ficavam as bananeiras de cujos caules e folhas seriam feitas mais adivinhações de sortes futuras. Em um canto entre eles ficava a casa de bonecas da pequena.
A pequena era eu.
Nessas noites de São João não fugia das pessoas. Ficava nos cantos, vendo as linhas que seguravam agulhas sobre bacias de água, respondendo às perguntas ansiosas das meninas. As risadas altas a fascinava. Assim como a faca no caule da bananeira que escorria vaticínios tal qual uma pitonisa desvairada.
O mundo havia de ser algo muito complexo para que deixe sinais onde menos se espera.
Os gatos passavam rápidos. Nem tanto que não ganhassem carinhos furtivos e alguma que outra guloseima que escapasse para suas bocas sempre miantes e famintas.
A noite fria tinha estrelas infinitas. Ninguém ainda sabia mas a pequena sonhava em conhece-las mais. Quem sabe se tornaria astrônoma um dia, embora nem ainda soubesse o que isso significava. Por enquanto só ouvia falar de princesas que dormiam em centenas de colchões e mesmo assim sentiam grãos de ervilha. Ah, como as entendia, ela que de quarto tinha um canto do corredor, sem portas nem paredes que protegessem a sua privacidade. Quando fosse grande iria ter portas. Muitas portas que pudesse fechar sempre que quisesse.
A fogueira era enorme.
O fogo era o ápice da festa. Desde que seu irmão fizera uma no canto da casa e quase provocara um incêndio, era responsabilidade dos adultos.
Não lembra das quadrilhas nem se alguém pulava as fogueiras.
Nessas horas a pequena já tinha ido para o seu canto do corredor e se olhava a festa pelas janelas basculantes ao lado de sua cama, ninguém havia de perceber.
Eram noites de São João.
O mundo era mais calmo.
Ninguém precisava se esconder.
Apenas ela, que já era adepta do isolamento social, muito antes da grande pandemia de 2020.
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