Abraços de Clarice

"Só poderia haver um encontro de seus mistérios se um se entregasse ao outro: a entrega de dois mundos incognoscíveis feita com a confiança com que se entregariam duas compreensões." Clarice Lispector - O livro dos prazeres

Clarice me acompanhou em épocas de descobertas. Não por acaso seu livro, Uma aprendizagem, era minha leitura de cabeceira dos vinte anos. Por uma espécie de ato falho eu sempre colocava a palavra amarga ao lado, como em uma constatação de que a busca de si e da profundidade sempre deixa marcas de escavações, nem sempre fáceis. Na verdade nunca.

Ouvi numa live, atual mania das pessoas em tempos de pandemia, que Clarice é complexa porque a gente nunca sabe o que ela quis dizer. Na época isso nunca me preocupou. Nem quem era a Clarice real, sua biografia, sua trajetória. Ela era alguém que traduzia em belas palavras muito que eu sentia. Nossa convivência era algo mais visceral que literário.

A medida que fui passando do mistério de ser e de se buscar, para um pragmatismo de agir, Clarice foi relegada à prateleira daqueles amigos que a gente vê, mas não consegue reconhecer porque o mundo pede pressa.

Se ela me volta agora, nesses tempos pandemônicos, deve ser pelas razões do desconhecido que une as pontas do mergulho que se faz premente. 

Clarice volta e me abraça.

Incognoscível: "Que não pode ser conhecido pelo uso da razão e/ou da inteligência. Extremamente difícil de se conhecer; impossível de ser conhecido."
O abraço talvez seja, dos atos humanos, junto com o beijo, o que expressa da melhor maneira o amor em toda o "seu tenebroso esplendor", como diria Caetano naquela sua canção que também me abraçou em tempos de descobertas da entrega amorosa. 

Mais que paixão e relação amorosa de um para outro, ou outros, o abraço é amplo entre seres amorosamente ligados. Coisa melhor que um abraço entre pais e filhos, na chegada de uma longa viagem. Uma abraço entre amigos que se separam. Já recebi um abraço inesquecível de uma rival, que foi um reconhecimento de que nós duas podíamos amar e reconhecer a capacidade de amor alheia. E mais, um abraço acolhe, dá ninho e continente. Nos faz sentir aquela humanidade que é ao mesmo tempo, eternidade e mortalidade.

Abraços de Clarice também me chegam como esse carinho nos tempos em que, obrigada também pelo respeito e amor, me recolho, agora não metaforicamente, ao meu ninho.

Abraços de Clarice me acolhem enquanto os braços de amores e amigos se fazem mais saudade que realidade. Nela encontro a confiança das compreensões cada dia mais incognoscíveis no mundo estranho que nos chega de roldão. 

Abraços de Clarice me dão o conforto de quem se encontra com sua própria inquietação que é ao mesmo tempo campo seguro e desafio de retomada.


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