Miraflores
Miraflores é uma cidade pequena, dessas onde o
progresso só chega por notícias de jornal, mesmo assim muitas vezes
atrasada. Mesmo a internet era de difícil acesso. Um lugar onde as
pessoas nascem, vivem e morrem como seus pais, e antes deles, os avós
e bisavós. As ruas são preguiçosas e vazias. Poucas lojas, a do
seu Roberto, gordo e falante. A padaria do Seu Quincas, cheia de
moscas no verão. As festas na Paróquia. Tudo convenientemente
acertado para que não se tivesse surpresas. Poucas pessoas
conseguiam sair dessa rotina que marcava suas vidas desde sempre. Uma
delas era Arthur. Era sobre ele o obituário que Raquel lia e, para
seu espanto, falava dela.
Sua memória, ainda ágil para oitenta anos,
fez um filme. Uma menina loira de olhar assustado. Adolescente tímida
e crítica. A mulher que venceu desafios e lutou pela vida. A senhora
que cuidou tanto dos outros, sempre pia. Olhou em volta, seus
porta-retratos gritavam solidão. Eram ela e suas viagens. Ela e seus
sobrinhos. Ela sempre só. Seu corpo tocado por tantos, sua alma
sempre intacta. Seu ventre que nunca pariu. Seu sonho de encontro
sufocado. Nascera, crescera, não se multiplicara, morreria ali, na
mesma casa de seus pais.
Seria mentira dizer que não amara. Não, fora
namoradeira e coquete como se dizia no seu tempo. Brincava, sorria,
bebericava. Dançava em noites de folia. Mas sempre tinha um senão,
um porém, um desencontro. Culpa dele.
Arthur. O vizinho. Irmão de sua melhor amiga. O
rapaz mais velho, de olhos pretos sonhadores e rebeldes. O que falava
de revoluções e martírios. O que saía pelas ruas roubando todos
os corações. Mistura de borboleta e fascínio. O que falava com ela
como se ela tivesse importância. O que escutava seus desvarios. O
que lhe deixava molhada antes dela saber o que isso significava. Ele
sim tinha sido o culpado de ninguém mais.
Os dois. Seriam promessa, se fosse possível. Ela
julgava que não. Ela tinha certeza de que ele sabia que não. Nunca
ousou cruzar a linha. Pensou que tem coisas que não são para. Que
não nasceram para. Que nunca.
Ele se foi. Ela ficou.
Já tinha até esquecido quando pousou os olhos
naquela notícia de jornal. Arthur tinha feito sim as coisas que
queria. Revolucionara, tivera filhos, escrevera livros. Ela nunca
soube. Ele nunca usou seu nome verdadeiro. Virou guru e foi
rebatizado. Ela mesma comprara seus livros. Alguns. Pareciam ter sido
escritos para ela. E tinham.
Seu nome, com todas as letras e formas, apareciam
nas cartas que deixara como testamento póstumo. “Ao meu único e
verdadeiro amor, Raquel, para quem dedico minha vida e feitos”.
Ela não entendeu. Demorou algum tempo para que as
letras se encaixassem em algum sentido. Outro filme passou na sua
mente, mas agora de trás para frente: voltou a ser guria, ouvindo a
voz dele dizendo: vem comigo, vamos fazer o mundo. Se viu rindo
encabulada, pensando que era uma piada sem graça.
Não era.
Ele tinha ido. Ela tinha ficado. Não mais. Pegou
sua bolsa apressada, esse chamado ela não ia negar. Bateu a porta
com força e deu adeus à Miraflores sem olhar para trás.
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