Ferrolho

Quase daqui a pouco
Hora do café
Da janta
Da cara lavada
Da angústia entalada
Hora de ligar a tv
De olhar para você 
De mimar o gato





Hora de enxugar uma lágrima
Fazer de conta que ri
Brincar de sobreviver
Mais um dia
Mais um momento
Apenas hoje
Daqui a pouco

Ia fazer de conta que a porta fora aberta, que pegara a mala e ganhara mundo. Ia imaginar que os segredos iam se dissolvendo, um a um, em cada passo que dava em direção à rua. Insegurança chamava. Não saber do amanhã, passar fome se fosse preciso, fome de revirar a barriga que a da alma já tinha morrido mesmo de inanição.

Seu toc toc no corredor de mármore fazia ritmo com o tic tac do relógio da vizinha que marcava hora de iniciar a noite. Todo mundo chegava. Ela saia. 

O cachorro latiu triste porque o dono demorava. A calopsita cantou mais alto exatamente pelo motivo contrário. Todos tinham dono. Tudo tinha dono. Nada era livre nessa vida. Parou o passo que ia apressado. Começou a pensar com a razão em vez da emoção. Ideia mais doida dar um grito do Ipiranga em plena noite de quarta, no meio da cidade fervilhante que ia se apagando lentamente. Tem escolha quem tem como bancar seus sonhos. 

Nesse meio tempo ia gritar: socorro! Era desses SOS que ocorrem nos filmes. Um aviso de naufrágio eminente. Bip bip traço traço traço, era um código que desconhecia, podia ser que estivesse emitindo sinais contrários do tipo: olha que bacana, como sou cool, como aguento o tranco, como sou interessante. Devia ter aprendido código morse no primário. Primário...nem existia mais. Só falar nisso já denotava a idade mais ou menos provecta que se aproximava. 

Socorro, seus passos gritavam nos saltos finos do sapato vermelho. 

Socorro, falavam seus cabelos ao vento, meio soltos pela escova de todo dia.

Socorro, sonhavam seus sonhos esmagados, sua paciência erodida. 

Socorro, dizia sua saúde rota.

Olhem para mim, sou apenas uma pessoa pedindo passagem, indo morrer em um canto, já sem forças de se reerguer.

Me ajudem pediam meus átomos, meus neurônios, meus poucos sensos comuns. 

Me deixem alertavam todos os meus instintos. Deixei de ser bacana, deixei de ser elegante, deixei de achar que um dia, em algum lugar, haverá uma saída. 

Por ora vou tomar a rua, me embebedar no primeiro bar, pegar o primeiro homem gostoso que encontrar e me esbaldar em um doce e terrível esquecimento dos lençóis sem alma, só abandono. 

Um dia talvez volte. Talvez não. Tranquei com chave de ouro todos os meus poros e saí fazendo aquele barulho de todo dia: s....o...s....

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