E se eu fosse o Cristiano?


Dias de correria, sabem como são? Papéis sobre a mesa, um pensamento no projeto, outro no texto por fazer e mais um terceiro sobre as notícias em redes sociais. Toca o telefone. Um silêncio na linha. Depois, muito depois, soa uma voz metálica perguntando pausadamente:

-Você é o Cristiano? (Leu isso rápido? Não, volta e lê pausadamente. Você....é....o....Cristiano?

-Não, respondo rápida, sem pensar muito.

A voz robótica torna a perguntar:

-Você...conhece...o ...Cristiano?

Um não ríspido e retorno ao trabalho. Seria uma interrupção momentânea se não se repetisse milhares de vezes no mês, nas horas mais inoportunas. No trabalho, no meio de uma série, naquele trecho do livro em que se esquece do mundo. Até na hora da meditação, agora apelidada de mindfullness para tornar mais palatável para pessoas que não podem perder tempo com essas bobagens de nova era. Nada que a ciência não possa comprovar com pesquisas e teorias pode ser sério!

Na sexagésima nona vez que a máquina me pergunta pelo Cristiano e depois de todas as respostas mais educadas e mais grosseiras que pude encontrar, me veio uma dúvida: e se eu fosse o Cristiano?

Fiquei com vontade de dizer que sim para saber o que esta pessoa fez para ser tão procurada. Seria um daqueles que vive dando golpes no mercado e deixando o telefone alheio para se safar das responsabilidades? Ou quem sabe um perigoso e maléfico espião do FBI que se disfarçava de zé ninguém para sumir das buscas, mas que de alguma maneira deixou um rastro na nuvem?

Poderia ser também um ser especial, desses que ajudam os outros e depois sofrem as consequências de ter seu nome disposto em serasas e mailing de cobranças.

Quem sabe um milionário que todos procuram para vender de tudo: de novos lançamentos imobiliários à planos de cremação chamados de Vida Feliz?

E se fosse na verdade meu alter ego? Sempre me julguei tão normal, tão certinha. Se nas horas de descanso mental eu me transmutasse nesse ser das sombras, nesse alguém tão procurado e nunca encontrado? 

Mas, e se, pior ainda, essa eu fosse na verdade uma invenção do Cristiano, que nesse momento está sentado em um note, num dia chuvoso de domingo, escrevendo a história de uma mulher normal, ou quase, idosa, mas nem tanto, com pretensões à escrever, imaginando suas angústias e certezas e rindo consigo mesmo de como ela se julga inteira e humana.

E se o Cristinao fosse na verdade também uma máquina que criara a história de um homem que escreve sobre ser uma mulher. E se isso tudo fosse uma grande, louca e sublime invenção e nada fosse real de verdade?

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